Está há um ano à frente do IPO de Lisboa. Muda a perspetiva mesmo para quem já era diretor clínico?
Não muda demasiado, tenho de tomar decisões em que já participava mas a outro nível. Em contrapartida, ganhei um diretor clínico. Não me sinto numa missão diferente. É tentar influenciar o funcionamento quer desta instituição quer do SNS no sentido do que é mais necessário à população e à aplicação do progresso no tratamento das pessoas.
Quais foram as grandes preocupações ao longo deste ano?
A principal tem sido conseguirmos ter um quadro de pessoal suficiente. E de facto o que temos tido é uma limitação das contratações, das progressões nas carreiras e isso começa a ser problemático para manter o nível de cuidados, a diferenciação e para continuar o processo de transmissão de saberes.
As restrições agravaram-se?
Não posso dizer que tenham agravado, mas persistiram. Mesmo com o objetivo primordial de limitar o défice, há que perceber onde é que é mais útil aplicar o dinheiro e estou absolutamente convencido de que aplicando mais fundos na contratação de pessoal, valorizando as pessoas do ponto de vista remuneratório e da progressão de carreira, mesmo que aparentemente se gastasse mais dinheiro, ia gastar-se menos. Não temos conseguido convencer as Finanças disso e depois há decisões completamente contraditórias.
Por exemplo?
Por causa das limitações nas progressões na carreira, que permitiriam dar mais 200 euros a pessoas que eram necessárias ao hospital, acabámos por perder um conjunto de profissionais e ter de contratar serviços de análises a privados a dezenas de milhares de euros, mais caros. Para isso houve dinheiro, para contratar as pessoas temos de esperar por autorização das Finanças, que é sempre muito rateada. E isto é verdade para profissionais de saúde mas também para outras profissões indispensáveis num hospital. Temos lista de espera para consulta, para cirurgias mas também temos lista de espera para compras, por falta de pessoal.
E depois falta material?
Temos seis pessoas no departamento de compras, a ganhar pouco. Os procedimentos relativos a contratos públicos são complexos, têm muitas peças e estamos a falar de comprar milhares de coisas. Temos um orçamento de 140 milhões de euros para gerir. Há uma discrepância enorme entre o trabalho que tem de ser feito e os meios. E isto causa atrasos na compra de produtos que são necessários para tratar os doentes, ruturas de material. E nem é por falta de dinheiro, é por falta de pessoal. Acontece no IPO como acontecerá noutros hospitais.
Cancelam-se cirurgias por causa disso?
Cancelam-se cirurgias, cancelam-se tratamentos, desperdiça-se tempo e recursos. Tem também repercussão sobre a fadiga dos profissionais: trabalhar num sítio onde de repente falta qualquer material e nem é por dinheiro cansa. Percebo que as pessoas estejam cansadas e desmotivadas. Algumas acabam por sair.
O Governo anunciou um reforço de 800 milhões de euros para a saúde no próximo ano e a contratação de 8400 profissionais para os próximos dois anos. Parece-lhe suficiente para resolver as dificuldades?
Ainda não tive possibilidade de verificar como será distribuído esse reforço pelos diferentes estabelecimentos do SNS e se virá acompanhado de instruções sobre a forma de o aplicar. Qualquer incremento de financiamento pode revelar-se um desperdício se não se reflectir na valorização do pessoal e travar as saídas para o privado e impulsionar a reorganização dos serviços, se acabar por ser para pagar a fornecedores de serviços. Receio que o esvaziamento em recursos humanos do SNS possa ser visto por alguns sectores do Governo como desejável porque a atração de investimentos privados é importante para a economia, a saúde é uma área atrativa para investimentos e se o SNS tiver deficiências, a atratividade para os privados vai aumentar. Admito que exista uma grande influência de investidores junto do Governo, que não se esteja a perceber que isso vai redundar na privatização de uma grande parte das atividades essenciais e intrínsecas do SNS, com menor qualidade para os cidadãos e, sem dúvida, a custo mais elevado.
Não vê benefícios de maior complementaridade, melhorar o acesso por exemplo?
Todas as privatizações de serviços nacionais de saúde – e o exemplo mais forte é o inglês, em que isso foi deliberado – foram sempre em nome da melhoria do acesso e de diminuição do custo e não conseguiram nem uma coisa nem outra. Neste momento, muitos criticam a situação do NHS em Inglaterra, com razão. Em 2012, com a lei Lansley, criou-se a possibilidade e obrigatoriedade em alguns casos de o serviço nacional de saúde pôr a concurso os serviços de que necessita e com isso desarticulou-se o sistema. Os privados conseguem sempre fazer propostas de fornecimento das coisas que lhes interessam e são mais lucrativas e os mecanismos de regulação andam sempre atrasados. Hoje têm mais buracos na prestação de cuidados, as listas de espera não melhoraram e perdeu-se sobretudo a coerência que um serviço nacional de saúde tem de ter.
O SNS também já perdeu essa coerência?
Acho que ainda lá não chegámos, mas noutro dia fizemos as contas e neste momento 15% a 20% da nossa atividade clínica no IPO já é feita em outsourcing. E não falo da lavandaria ou da cozinha mas de atividade clínica que não conseguimos garantir, sobretudo por falta de pessoal, de equipamentos, de condições. Tem aumentado ao longo do tempo muito pela incapacidade em reter profissionais, o tempo que demoram a chegar as autorizações e pela dificuldade em concorrer com o privado.
Inauguraram este ano uma nova unidade de transplante de medula. Já têm as autorizações todas para contratar os profissionais para abrir os novos quartos?
Ainda não e esse é um exemplo. Primeiro as autorizações demoram meses. Depois mesmo vagas autorizadas por exemplo para enfermeiros não conseguimos preencher porque a concorrência do privado é cada vez maior. E estamos a falar de pagarem mais 200 euros de salário base, mas não o podemos oferecer.
A separação entre público e privado não é apenas ideológica?
Pode ser ideológica, se se achar que o princípio da socialização do risco na doença é ideológico. Quanto mais vejo, mais reforço a convicção de que a melhor forma de concretizar o imperativo constitucional do direito à saúde é com a prestação pública financiada pelos impostos, cobrindo todo o território e toda a população com a maior igualdade possível. Existem outros modelos, mas não demonstram melhores resultados. A essência do SNS é a coordenação, é levar os doentes ao colo, por assim dizer, durante as adversidades da doença. Tem de estar organizado de forma sistémica, o que significa uma integração e sinergias em que o todo é superior à soma das partes. Se o desvirtuamos, vamos perder esta característica em troca de nada.
Parece-lhe que os sucessivos governos têm aliviado a responsabilidade na saúde porque sabem que parte da população vai ao privado?
Acho que os sucessivos governos, muito pressionados pelos aspetos financeiros, não têm avaliado devidamente o prejuízo económico e social de não dotar o SNS dos meios necessários. O risco é ficarmos com um SNS exaurido e que por esvaziamento de capacidade operacional, continuará a existir apenas como plataforma de passagem de dinheiro público para os privados a quem vamos ter de encomendar aquilo que formos ficando impedidos de fazer. Isto tudo apoiado numa propaganda intensíssima que, em desfavor do SNS, hiperboliza todas as pequenas deficiências fazendo crer que existe uma superioridade da prestação privada. O privado pode escolher os doentes que trata e os procedimentos que realiza e assim é fácil não mostrar falhas. O SNS tem de conseguir ser persuasivo a mostrar às pessoas que está a fazer por elas o que é mais moderno, mais eficaz e necessário e onde é que está a futilidade.
Tem conseguido?
Acho que se está a deixar entrar numa fase defensiva em relação à tendência de privatização dos cuidados de saúde. É fácil criar falsas expectativas nas pessoas do ponto de vista comercial. O SNS tem de andar à frente da propaganda de quem só quer vender produtos.
Recebem muitos doentes que esgotam os plafonds dos seguros em tratamento no privado?
Chegam alguns casos, algumas pessoas vêm desiludidas, outras estavam satisfeitas mas não puderam continuar. Temos de conseguir dar resposta a todos. E é isso que está em causa. Não podemos recuar naquilo que considerámos um avanço civilizacional, de uma pessoa não ficar desvalida na doença independentemente da riqueza que conseguiu acumular. Teremos uma sociedade menos justa, o SNS é um instrumento de equidade social. Felizmente, apesar de todo o mal que se diz diariamente, as pessoas já não se lembram de como era antes de existir SNS. A minha mãe era auxiliar social, trabalhava no ministério dos Assuntos Sociais. As pessoas, para não pagarem nos hospitais, tinham de ter um atestado de pobreza. Por vezes, acompanhava-a ao Casal Ventoso e a outros bairros onde fazia os inquéritos para passar os atestados. Ver a angústia das pessoas que precisavam de um atestado marcou-me. Lembro-me de mães a queixarem-se de terem os filhos doentes e não os conseguirem tratar, num autêntico desespero. Pode dizer que é ideológico. Não é por teimosia que acho que o sistema que agora temos é o melhor que conhecemos.
A qualidade degradou-se nos últimos anos? Vemos tempos de espera elevados e no IPO um quarto dos doentes são operados fora dos prazos recomendados.
Em algumas áreas admito que sim, nos cuidados de saúde primários penso que há condições muito melhores, mas a pressão aumentou. Claro que não ficamos confortáveis com os tempos de espera, por mim os doentes eram operados no dia seguinte, mas temos de conseguir ter alguma tranquilidade. No caso do IPO, temos conseguido operar os doentes mais urgentes dentro dos tempos recomendados e a maioria dos outros doentes alguns dias depois. Podemos perguntar: não conseguimos tornar o sistema mais sólido em 40 anos, vamos fazê-lo agora que é mais difícil? Temos de conseguir.
Já houve momentos em que lhe apeteceu deitar a toalha ao chão?
Há por vezes a sensação de alguma injustiça perante os reparos das diferentes entidades que regulam, inspecionam, o Tribunal de Contas, a IGAS. Às vezes sentimos uma impotência desesperante quando houve incorreções nos procedimentos mas a preocupação foi tratar os doentes, que não sabem e não têm culpa da dificuldade do hospital.
Defende que além de mais dinheiro é necessária uma reorganização. Fala-se há anos de uma reforma… não é uma utopia?
Não pode ser. Existe pouca subsidiariedade entre as instituições, pouca exploração da relação entre cuidados primários e cuidados hospitalares, mas não melhorará mantendo a retórica de independência dos hospitais. Concordo que é preciso mais autonomia na gestão do dia-a-dia, a par de orçamentos equilibrados, mas para além da autonomia necessária, é necessário um grau de articulação em rede entre os diversos níveis que são essência do SNS e que devem orientar os doentes dentro do sistema, evitar redundâncias e esperas desnecessárias.
Portanto o SNS está desfalcado e desconectado.
Sim, há um enorme fracionamento dos cuidados. Se quiser: temos um serviço nacional de saúde? Não, ainda lá não chegámos. E aqui, se o outsourcing pode parecer solução, não é. Substituir a prestação pública pela privada não é melhor porque fragmenta ainda mais e privilegia sempre as prestações economicamente mais interessantes, que podem não ser as clinicamente mais necessárias.
O que gostava de ver concretizado nos próximos meses?
Um novo estatuto para os profissionais do SNS, a possibilidade de terem remunerações mistas, com componente fixa mas com possibilidade de se pagar em função do mérito e da atividade mas com estímulos dirigidos às verdadeiras necessidades da população, para aumentar resposta. E isso significará necessariamente pagar mais aos profissionais.
A exclusividade é incontornável? Parece haver algum bloqueio das Finanças.
Não poria o foco aí. Penso que seria vantajosa mais nuns serviços do que noutros, a questão é as pessoas estarem motivadas e terem condições para trabalhar. A exclusividade aparecerá em consequência. Nas novas unidades de saúde familiar há muitas pessoas que trabalham em exclusividade, têm incentivos, não lhes sobra tempo para fazer mais nada. Não é preciso inventar nada, é só seguir os bons exemplos que já temos. E coisas simples: por que não termos uma creche no hospital? Se calhar conseguíamos fixar profissionais jovens com filhos só por aí.
Nos últimos meses houve denúncias de restrições no acesso a medicamentos oncológicos, de demoras na aprovação pelo Infarmed. Há mais dificuldades?
Penso que muitas das denúncias que se ouvem têm de ser comprovadas, perceber as mais-valias dos medicamentos e se existem alternativas terapêuticas. Para medicamentos tem havido sempre dinheiro. No IPO de Lisboa, temos vindo a aumentar 6 milhões de euros por ano em despesa com medicação, nunca deixamos de dar um medicamento por razões de dinheiro. A única coisa que é restringida é o reforço de pessoal e progressões nas carreiras.
O país está preparado para o aumento dos casos de cancro com o envelhecimento da população?
O problema não é só esse, mas a complexidade. Aumentam os casos de cancro com o envelhecimento mas pode-se fazer muito mais coisas pelas pessoas, aumenta o número de atos por doente, é preciso sincronizar isto tudo, um doente chega a estar 20 minutos cá fora depois da consulta com um secretário a perceber quando é melhor fazer os exames, os tratamentos. É preciso ter em conta as condições de cada pessoa, alguém que viva perto tem a facilidade de ir ao hospital mais vezes, alguém que precisa de um filho que trabalha é diferente. Temos de conseguir articular tudo isto. E às vezes ouve dizer-se: organizem-se que não precisam de mais pessoal. Para reformar o sistema e responder às pessoas é preciso gente e tempo para pensar e não andar sempre a correr para responder ao dia a dia.
Conseguem aceitar todos os doentes?
Tentamos mas temos sobretudo de encontrar as melhores soluções para as pessoas dentro do SNS. É esse cimento que é essencial e tem de ser melhorado.
Começou como médico na década em que Nixon prometeu guerra ao cancro. Havia mais otimismo de que se encontraria uma cura?
Acabei o curso em 78. Comecei como hematologista, na altura ainda não havia a especialidade de oncologia médica em Portugal. O tratamento médico do cancro começou com a hematologia e muitos dos grandes progressos continuam a ser feitos nesta área.
Este ano foram notícia os primeiros tratamentos em Portugal com uma nova terapia genética, que já permitiu curar doentes com linfoma num estado muito avançado. É o último salto?
Penso que ainda é cedo para dizer, temos os primeiros doentes tratados com as chamadas células CAR-T e estamos numa curva de aprendizagem. É algo em que se pensava há mais de 40 anos. Trabalhei com o dr. Joaquim Gouveia, que conheci há 37 anos na Unidade de Hematologia do Hospital dos Capuchos e que foi diretor do IPO de Lisboa e Coordenador Nacional das Doenças Oncológicas – uma pessoa a quem devo orientação profissional e aconselhamento, ao longo de toda a minha carreira e até poucos dias antes do seu falecimento, no início de novembro. Tinha feito parte, em França, da equipa do prof. Georges Mathé, pioneiro do transplante de medula e falávamos disto, do tempo que as coisas por vezes levam. Quando, há cerca de sessenta anos, se começam a fazer os transplantes de medula alogénicos – no fundo a introduzir um órgão imunitário estranho no organismo do doente – percebe-se que há uma reação do enxerto contra o hospedeiro mas que essa reação não afetava só as células boas mas também as células más, cancerígenas. Desde logo, Mathé idealiza a utilização de células imunitárias do próprio doente, modificadas de modo que fossem dirigidas contra o cancro, mas com um mínimo de toxicidade para os tecidos sãos. Um princípio próximo da imunoterapia celular que hoje aplicamos nestes novos tratamentos com células CAR-T. Não se pode dizer que os tratamentos vão funcionar em todos os casos.Temos de ir aprendendo e esperar. Os saltos nunca são de repente.
Mas esperava avanços mais rápidos?
Quando acabei o curso, só como exemplo, a TAC estava no início. Muito mudou. Nunca fui de muitos futurismos. No tempo de Nixon havia aquele entusiasmo todo porque quando se descobriu como funcionava a imunidade, pensou-se vai ser canja: vamos transplantar órgãos com toda a facilidade e vamos curar o cancro porque vamos descobrir a anomalia das células cancerígenas e como escapam ao sistema imunitário. A transplantação de órgãos de facto evoluiu muito, também porque alguém que andava à procura de substâncias antibióticas, desenterrou um fungo que se revelou imunossupressor, eficaz para o problema da rejeição, a ciclosporina. No cancro não foi assim: as células do cancro têm coisas diferentes – são agressivas, proliferam sem necessidade, invadem órgãos e podem dar cabo da vida – mas partilham muito mais características comuns com as células normais do que características diferentes e por isso é muito difícil inventar qualquer coisa que as destrua e não destrua também as células boas. O cancro é nosso e esse é o desafio. Mas com certeza que houve avanços.
Qual foi o maior?
O exemplo mais marcante é na leucemia mieloide crónica. Quando comecei, 90% dos doentes estavam mortos cinco anos depois do diagnóstico. Houve vários progressos e quando se inventou um medicamento que bloqueia a alteração genética por detrás da doença mudou completamente o prognóstico. Hoje as pessoas têm esperanças de vida quase normais. Pensou-se: agora só é preciso encontrar inibidores como este para outras doenças. Não aconteceu, pelo menos com esse alcance. Estão sempre a surgir novos medicamentos, com preços cada vez mais elevados mas a maioria tem mais-valias apenas ligeiras. Fora da hematologia ainda não há nenhuma doença oncológica que se trate só medicamentos, a cirurgia continue a dominar. Numa fase que a doença não for curada cirurgicamente é incurável.
Trabalhar com cancro trouxe-lhe uma sensibilidade diferente como gestor?
Acho que sim. Se há coisa que continua a caracterizar esta doença, mesmo em fases menos intensas, é uma grande dependência dos cuidados de saúde, de consultas regulares, atempadas, a multiplicidade de exames e de sessões de tratamento. É inevitável que os profissionais se sintam ainda mais indispensáveis a estes doentes e vivemos com eles as dificuldades não só da doença mas muitas vezes sociais e familiares. Agora há mais emprego, mas nos últimos anos ver filhos com medo de perder o emprego para virem com a mãe ao hospital era angustiante. Temos de trabalhar em função das agendas dos doentes e não das agendas dos serviços e é isso que temos tentado fazer, marcando consultas e exames para o mesmo dia, diminuindo as vindas ao hospital e tentando encurtar o tempo para início de tratamentos.
O ambiente torna-se menos pesado quando se conhece o hospital por dentro?
Iniciei-me na hematologia nos Capuchos em 1982. Não se conseguiria trabalhar em serviços de doenças oncológicas, diariamente, ao longo de 38 anos a achar sempre que o ambiente é pesado. Por vezes, é. Mas, apesar de tudo e de todos os defeitos, temos muitos momentos gratificantes, quando sentimos que tornamos o caminho dos doentes um pouco mais leve ou que a nossa acção os livrou da doença. Para os doentes e familiares, julgo que também conseguimos construir geralmente uma vivência do interior do hospital que ultrapassa o temor infundido pelas histórias e pelo desconhecimento do que está por dentro da austeridade dos edifícios.
Fazem este mês 96 anos. Consegue imaginar como seria esta casa em 1923?
Consigo, há muitas fotografias. E li o "Domingo à Tarde", de Fernando Namora, que nos transporta para o ambiente das primeiras décadas do instituto. A fundação do IPO correspondeu a uma época de grandes progressos do conhecimento médico, geradores de um espírito de conquista sobre as adversidades da saúde. Aqui o pioneirismo nesses anos 20 foi perceber que havia necessidade de uma instituição só para o estudo do cancro. Agora, podemos achar que os meios na altura eram rudimentares, mas o IPO respirava modernidade. Havia a cirurgia e a radioterapia, que era a grande aposta, ainda não se conhecendo todos os efeitos secundários. Penso que na altura a sensação que se tinha aqui seria como estar no topo do progresso. Pensou-se uma arquitetura modernista, entradas de luz, espaços amplos, linhas retas, estava ali na própria arquitetura a clareza do conhecimento, o caminho. Francisco Gentil tinha uma personalidade singular, dizia-se que quando despedia alguém era o porteiro que já não deixava entrar. Com António Sérgio, que era o ministro da Instrução Pública, teve de facto essa visão. Souberam interpretar os sinais do tempo. Eram homens com mundivisão. Hoje temos muita globalização, mas às vezes falta um pouco disso para irmos mais longe.
Já disse que gostava que o presente do 100º aniversário fosse o novo edifício, no papel há mais de duas décadas. Em que ponto está o projeto?
Continuamos à espera de autorização das Finanças para pagar a revisão do projeto, cuja primeira versão é do início dos anos 2000. Temos diversos contactos para o financiamento mas ainda não está completamente garantido. É mais do que necessário para podermos aumentar a resposta e melhorar as condições dos cuidados em regime ambulatório, que são uma grande parte da oncologia dos nossos dias, com grandes benefícios para a vida dos doentes.