Há os que são da morte, que a têm como a um instinto, e chegam a vesti-la antes de tempo, cumprindo o luto de si mesmos. É um modo, entre tantos, do egoísmo. Depois, outros há que se recusam a ela, às épocas que fedem, e se posicionam simetricamente opostos: «Quando um dia estiver morto/ não me chamem assim de morto (…) Não digam que acabei/ mas que estou iludido/ Que fiz desertos com túmulos/ e praias geladas ao passear doentes».
Fernando Lemos fazia uso de um sentido abrangente da poesia. Tinha a noção de que um homem se acha no movimento inteiro do ato, e que, há margem disso, «o que se diz só serve para esquecer». Daí que seja difícil situá-lo, atirar com ele todo numa tumba só entre as categorias artísticas. Fotografia, poesia, design, desenho, pintura eram modos de somar as suas parcelas, de se inventar ou investigar «com o tacto apurado de quem está aprendendo a nadar, o tal jeito esfomeado de procurar as linhas, etc». De resto, no que toca à multiplicidade e abrangência da sua atividade, no documentário Fernando Lemos – Como, Não é Retrato?, de Jorge Silva Melo, ele mesmo se retratava através dessa sobreposição de negativos, que fixava apenas um movimento constante: «Fui estudante, serralheiro, marceneiro, estofador, impressor de litografia, desenhador, publicitário, professor, pintor, fotógrafo, tocador de gaita, emigrante, exilado, diretor de museu, assessor de ministros, pesquisador, jornalista, poeta, júri de concursos, conselheiro de pinacotecas, comissário de eventos internacionais, designer de feiras industriais, cenógrafo, pai de filhos, bolseiro, e tenho duas pátrias – uma que me fez e outra que ajudo a fazer. Como se vê, sou mais um português à procura de coisa melhor». Aos 93 anos, tirou do bolso a morte como uma tangerina. Dizia que tê-la ali, guardada para a altura que lhe aprouvesse, lhe trazia algum sossego.
Nascido na Rua do Sol ao Rato, a 3 de maio de 1926, 27 anos depois, deixou a família, despediu-se dos amigos e até da mulher com quem prometera casar, e meteu-se num barco, o Vera Cruz, escapando à perra melodia de realejo que o salazarismo tinha para entreter e deitar abaixo. Numa entrevista ao Público, disse como a agonia que provocava aquele país debaixo da ditadura era um perigo, pois poderia ter-lhe roubado «o que podia ser bom» em si. Cinco anos depois de ter-se exilado, a Imprensa-Nacional publicou a reunião dos seus três livros de poesia, Cá & Lá, e ali ficou o testemunho de um homem nascido em Portugal e que se naturalizou brasileiro, porque viu que «o sol que nos foi roubado não era artificial como este que nos vigia». E já então, não planeando regressar ao país, despedia-se com um último desejo: «Procuro pelo menos que as gerações que se me sucedem, me culpem o mínimo que lhes for possível, na vergonha de tiranias a que fui obrigado a assistir».
Fernando Lemos morreu na terça-feira em São Paulo, para onde foi com ganas de saber o que significa a liberdade. Na entrevista concedida a Alexandra Lucas Coelho, em 2011, dizia que se tinha apaixonado até pelo lado pior daquela cidade – «esse crescimento desordenado que ajudou a imprimir a velocidade, a pressa». Fala de um país que se desdobra à nossa frente, e provoca uma certa aflição, essa que nos faz balançar entre o deslumbramento e o susto diante do mundo: «Perdemos a noção de que na terra existem coisas que não estão exploradas. O Brasil tem isso e tem um enredo». O contraste com Portugal é de tal ordem que se nasce de novo. O que este trancou numa concha aquele mete a faca e escancara.
Apesar de tudo, no que toca a um legado artístico, há uma rebelião imensa nos dois anos e meio em que fotografou em Portugal, antes de exilar-se. «O chão dará de sua conta o brotar das flores do a-pesar-de-tudo», diz um verso seu. E para o fotógrafo Jorge Molder, os Retratos 49/51/52 são a sua «grande obra». Essa fuga num efeito de escavação, o ir «à procura dos malditos», dos outros que se viam impedidos de falar alto, e que se afundaram no grito, como ele, carregaram a revolução para a qual o país talvez nem mesmo em Abril nem alguma vez, mais tarde, venha a estar preparado.
Nessa galeria que Fernando Lemos escavou e fixou à luz de raios, lê-se a história de uma fraqueza enorme que vai a par de um desejo imenso de lutar. Os retratos de Vieira da Silva, Mário Cesariny, Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena e Alexandre O’Neill, entre outros, causam a impressão de um resgate das personagens cuja convicção as tornava indignas da pequena intriga que era aquele país. Naquela série era possível vislumbrar uma outra ideia do que o país poderia ser se não fosse apenas «uma coisa para chorar».
Não me chamem assim de morto, pedia Lemos, «mas digam que fui um fraco/ que lutei». Esta fraqueza esteve sempre nele, exigindo-lhe um esforço suplementar. Derrubado na infância por uma paralisia, depois dos tantos anos em hospitais, nunca se libertou do coxeio. E mais tarde, ao entrar na velhice, teve de servir-se de uma bengala, passando nos últimos anos para uma cadeira de rodas. Molder dá relevo a esta debilidade, notando que Lemos era «um homem que tinha uma capacidade muito grande de lutar contra a gravidade». «Sejamos claros: o facto de ser coxo fazia com que tivesse de arranjar um suplemento de força para que levasse uma vida mais do que normal», acrescentou o fotógrafo. «Estar vivo não quer dizer nada», escreveu o poeta. «Uma garrafa também está e cada um de nós quer dela uma semelhança diferente». Bebamos então um gole da sua, e à sua.