Diz-se que a China planeia a 50 anos, e a transição de Macau, a 20 de dezembro de 1999, é um bom exemplo disso. Como Hong Kong, entregue pelos britânicos dois anos antes, Macau passou a reger-se pelo princípio «um país, dois sistemas», formulado por Deng Xiaoping. A antiga colónia portuguesa, inserida na Grande Baía do rio Pérola, serviu de laboratório para um novo modelo económico e político, virado para a expansão. Uma estratégia aplicada há vinte anos e pensada antes, «mas da qual só nos estamos a aperceber hoje», nota Carlos Piteira, investigador do Instituto do Oriente, especialista no sul da China.
Afinal, a Grande Baía é uma peça essencial para a chamada Faixa e Rota. É o mais ambicioso projeto de infraestrutura da história, que quer ligar a China ao sudeste do Pacífico e a África, passando pela Ásia Central e Médio Oriente até à Europa. No caso da Macau, trata-se de «um caldeirão cultural que permite relações comerciais cada vez mais próximas entre Pequim e os países de língua portuguesa», lê-se na World Finance. Não só com Portugal – um dos pontos de entrada de investimento chinês na Europa – mas também com o Brasil – que tem a China como principal parceiro comercial – e com países como Moçambique e Angola, onde os investidores chineses estão por todo o lado.
A isto junta-se a posição geográfica, que torna a Grande Baía fundamental para a estratégia chinesa no sul do Pacífico. A China luta por influência em países como as Filipinas, Indonésia e Taiwan – que Pequim sempre considerou parte da grande pátria chinesa.
Além disso, como Região Administrativa Especial (RAE), Macau desfruta de um regime económico particular. Durante algum tempo funcionou como uma espécie de paraíso fiscal para as elites chinesas – em 2017 constava da lista negra da União Europeia. Não só a antiga colónia portuguesa tem impostos baixos, como a crescente indústria do jogo (ver texto ao lado) foi muitas vezes usada para lavagem de dinheiro. «Não se esqueça que os casinos têm múltiplas funções», lembra Carlos Piteira, entre gargalhadas.
Identidade e prazo de validade
Após o fim dos 442 anos de governação portuguesa em Macau, o território recebeu um estatuto de autonomia. Ficou garantida uma economia de mercado, com uma moeda própria – a pataca – e um sistema político e judicial particular. Contudo, à semelhança de Hong Kong, tudo isto tem um prazo de validade: só dura até 2049.
É esse um dos motivos dos protestos em Hong Kong, onde muitos temem a perda de soberania. No entanto, há quem não veja esse risco. «É o contrário, vai é ser alargado», garante Carlos Piteira. O investigador acrescenta: «A tendência é que as outras províncias circundantes ganhem cada vez mais esta autonomia controlada». Refere-se ao projeto da Grande Baía, que pretende transformar numa enorme metrópole nove cidades da província de Guangdong, mais Hong Kong e Macau. Estamos a falar de uma região com 70 milhões de habitantes e um PIB de cerca de 1,2 biliões de euros – próximo do PIB australiano ou espanhol.
Contudo, uma das consequências prováveis deste aumento da autonomia económica e política é que os diferentes estilos de vida levem à emergência de novas identidades regionais – como se observa em Hong Kong. De um lado, no norte, teremos o centro de poder, Pequim, onde se fala mandarim, e a China rural. Do outro, a Grande Baía, cada vez mais desenvolvida e onde o cantonês é a língua mais comum.
«A China vai virar-se para o mundo através de metade de si. A outra metade fica fechada», resume Carlos Piteira. Se a região é «um laboratório que dá para ver os benefícios e os perigos da modernização», como refere o investigador, os protestos em Hong Kong são um bom teste para Pequim «perceber como lidar com este tipo de fenómenos».
Bom aluno de Pequim
Pode Macau tornar-se uma nova Hong Kong? A maioria dos especialistas não vê esse risco. Seja por a antiga colónia portuguesa ter uma sociedade civil menos organizada ou maior desenvolvimento económico. Além disso, a identidade macaense é historicamente mais definida, fruto de séculos de miscigenação. «Macau sempre teve que Hong Kong está a tentar afirmar», nota Carlos Piteira.
O próprio Xi Jinping parece ver Macau como o bom aluno de Pequim. Durante a sua visita ao território, no aniversário da transferência para a China, o líder chinês elogiou a «forma plena e precisa» como Macau implementou os princípios de «um país, dois sistemas». Já Sulu Sou, deputado pró-democracia de Macau, lamentou ao Wall Street Journal: «Obediência absoluta a Pequim, é essa a história de sucesso».