Fernando Canha da Silva espera-nos à porta da Igreja de São Francisco. Faz questão de mostrar os traços da grande intervenção de há cinco anos, que deu uma nova cara ao templo, marca da presença franciscana em Évora e conhecido local de romaria pela soturna Capela dos Ossos. Os ossos «foram todos limpos com uma escova de dentes», garante o nosso anfitrião, com um sorriso. A igreja está mais iluminada e tem um painel de azulejos Siza Vieira à entrada, a fazer o contraponto com o nascimento e a vida.
Em alguns pontos o teto estava em risco de colapsar, havia telas danificadas e um antigo dormitório de frades, no piso superior, que estava escondido por uma parede foi recuperado e transformado numa ampla galeria.
O major-general reformado do Exército, ‘general dos presépios’, como já lhe chamaram, elogia a determinação do pároco, o padre Manuel Ferreira. Foi também ele que lhe garantiu que ali haveria lugar para a sua coleção, desde 2015 com uma exposição permanente nas galerias superiores e com exposições temporárias anuais, um porto seguro que aos 78 anos de idade o deixa tranquilo.
Não chega para a mostrar toda, nem de perto, mas permitiu que depois de duas décadas de exposições por todo o país – em que quase sempre era ele que embalava e transportava cada uma das peças, para que não se perdessem – tivessem casa e curadoria. Em breve sairá o primeiro catálogo, com parte das histórias e origens, que vai desfiando ao longo da visita guiada.
‘Só não tínhamos presépios na casa de banho’
A história daquela que será uma das maiores coleções de presépios do mundo – vai nas 2800 peças – começa em 1971, quando Fernando Canha da Silva, já casado, é colocado na sua primeira comissão como jovem capitão em Évora. Não tinha o bichinho das coleções, mas crescera numa família católica, alentejanos do Gavião, e achou graça a um presépio de barro de Estremoz que encontrou numa loja da cidade. Hoje os bonecos de Estremoz são Património Mundial, a procura disparou. Não se lembra de quanto deu na altura pelo presépio em escadinha, mas ainda seria um bom investimento para um jovem casal. «Não fiz esses registos, nunca me passou pela cabeça que ia chegar aqui», conta. Seguiram-se outras compras, sempre por gosto, com a casa a encher-se de cenas da natividade. «Costumava dizer que só não tínhamos presépios na casa de banho, por respeito».
Foi em 1999, já no final da carreira militar, que percebeu que afinal não era só a ele e à mulher Fernanda, companheira desde os tempos de liceu em Portalegre, que o símbolo familiar do Natal tocava de uma forma especial. Era segundo comandante da região e aceitou finalmente um dos muitos desafios para uma exposição no claustro da Messe de Oficiais de Évora, no antigo Convento da Graça. Na altura tinha 180 presépios, mas ver o interesse que despertaram fê-lo querer ir mais longe, recorda. «Tocou-me muito».
Aposentado desde 2000, os últimos 20 anos foram de procura, desafios a artesãos – que às vezes telefonavam anos depois a dizer que os seus presépios estavam prontos –, lojas de velharias que guardavam peças à espera que chegasse, descobertas em feiras, ofertas e composições feitas por amigos. «Pus muita gente a fazer presépios, às vezes levava anos a convencê-los», diz.
Na Sala do Capítulo, no átrio que dá acesso à Capela do Ossos, encontramos os primeiros, uma amostra de uma coleção eclética. A ideia é «aguçar o apetite» aos visitantes e são muitos os que já vêm de propósito à igreja para ver a coleção, diz Canha da Silva. Um deles, com figuras grandes esculpidas em madeira, foi trazido da República Centro Africana pelo antigo chefe do Estado-Maior do Exército, Rovisco Duarte, numa visita às tropas portuguesas – alguns têm-lhe chegado assim, de teatros de operação onde estão destacados militares com quem se cruzou. «Não é o presépio tradicional, é de um padre escultor francês que reside lá, mas tenho outros tradicionais». Há também um presépio alentejano, um dos grandes ramos da sua coleção – este Natal em exposição no Museu do Relógio em Évora – feito de renda de cortiça, e outro de porcelana italiana Capo-di-Monte, do início do século XVIII.
Subimos ao piso superior, onde há mais um recanto com presépios, outro ‘convite’ à visita. Um dos mais coloridos e minuciosos é de Delfim Dias de Sá, conhecido artesão de Santo Tirso e um dos muitos amigos que fez ao longo do percurso como colecionador. É o autor de algumas das suas peças preferidas, embora esse seja um balanço difícil de fazer. «Quando colocamos tanto empenho em ter cada uma das peças, é difícil dizer que há favoritos, mas este foi daqueles em que a minha mulher deixou cair uma lagrimazinha quando disse que ia sair lá de casa», conta. Prometeu-lhe que pediria a Delfim para fazer outro.
Presépios para todas as artes
Na galeria onde está patente a exposição, as histórias repetem-se – e há quem pare uns instantes a ouvir a visita guiada com o colecionador. Ao todo estão ali cerca de 300 presépios e Fernando Canha da Silva tem pena que não haja espaço para mais.
Está lá o seu primeiro presépio de Estremoz, mas também peças de muitos outros artesãos do país, numa coleção que acaba por ser uma montra do artesanato nacional e das suas diferentes escolas, do barro de Barcelos a exemplares da obra do ceramista José Franco. Há depois «preciosidades» como uma peça delicada feita de miolo de figueira – a massa branca do interior dos ramos da árvore – tratada em finas fatias que moldam as figuras. «Se lhe disser que pesa ao todo sete gramas não acredita», diz Canha da Silva. A mestria é de Helena Henriques, artesã que mantém viva a técnica no Faial. «Arriscaria a dizer que é o único sítio no mundo onde ainda se faz isto».
Há presépios de origami e de pedra lápis lazúli, figuras dobradas num filtro de café ou coloridas com pó de pedras semipreciosas dos Montes Urais. Composições feitas com os antigos brindes do bolo-rei, papelinhos enrolados – penitências, como se dizia nos conventos –, em escamas de peixe – outro exemplar do artesanato açoriano – ou bagos de arroz. Das internacionais, paramos em frente a um presépio tradicional de Bagdade, que Canha da Silva recorda ter sido trazido também por um amigo de uma missão no Iraque. São dois homens a adorar o menino, Maria surge ao lado, junto às vasilhas da cozinha.
Descobrir como diferentes regiões e culturas representam o Natal foi um dos motivos que foram alimentando o seu fascínio por presépios, diz Canha da Silva, que admite não fazer contas ao valor da coleção – algumas peças custaram milhares de euros – e para quem o lado sentimental é mais difícil de pôr em palavras, mesmo quando encontra eco nos visitantes. «Muitas pessoas têm partilhado que ficam comovidas».
Os esgares de surpresa também são muitos quando a visita é explicada: de Roraima, na bacia do rio Amazonas, há um presépio feito de figuras de seiva, endurecida com vinagre, e um pouco adiante encontramos a cena natalícia gravada num dente de mamute fossilizado, uma peça que veio da Rússia e que utiliza a técnica scrimshaw, de gravação em marfim, também apurada por pescadores açorianos em dentes de cachalote.
A coleção continua a crescer, mas Canha da Silva admite que hoje o principal gosto está na divulgação e em garantir que será preservada. Dizemos-lhe que, no Guinness, a maior coleção registada não chega aos 2000 presépios, está guardada num museu em Feltre, Itália. Nunca pensou em candidatar-se? «Para quê?», atira. Tem encontrado outros colecionadores e acredita que tem um espólio como poucos, de resto chegam-lhe as palavras de quem aprecia e algumas brincadeiras, como a vez em que ouviu que batia aos pontos a coleção de Maria Cavaco Silva.
No futuro, gostava que os seus presépios – hoje ainda quase todos à sua guarda, numa casa em que sempre houve presépios todo o ano –, ficassem ali, na igreja que um dia os acolheu e onde, também pela fé, lhe fazem especial sentido.