Bailando sobre um traço de cal

Abbadie teve um momento de orgulho juvenil. Por causa dele, não foi campeão do mundo e quis morrer

De um homem nascido em Canelones não seria de esperar grande habilidade para o futebol. Mas Júlio César Abbadie era um fulano que contrariava, se preciso fosse, o próprio nome. Um dia, Gabriel Garcia Marquez disse sobre ele: «Às vezes, quando procuro palavras que sejam parecidas com o que quero dizer realmente, penso que gostaria de escrever como Abaddie jogava». Pois. Jogava no ponto mais alto da literatura.

Em 1950, Júlio César completara 20 anos. Juan Lopez, o seleccionador uruguaio, ainda tinha uma vaga para preencher na equipa que levou para o Brasil onde se disputava o Campeonato do Mundo. Chamou Abaddie. E ouviu da boca do rapazinho: «No, Juan, no me siento preparado. Además prefiero no ir de relleno». Um vento de orgulho despenteou, nesse dia, os cabelos negros de El Pardo. Ele que preferia que lhe chamassem de ElNegro por ser menos ordinário.Tinha vindo do Pan de Azucar para o Peñarol e o peito enfunava-se-lhe de orgulho como a vela de galeão do Raposão do divino Eça em busca da relíquia que acalmasse as ânsias beatas da horrenda Titi. Recusava a suplência. No seu lugar foi Rubén Morán, um menino da sua idade que, três anos mais tarde, abandonaria o futebol envolto na depressão que o conduziu à morte. Por sua vez, quando recebeu a notícia de que o Uruguai fora campeão do mundo no Maracanã, Abbadie soltou uma expressão que não fez jus a Rubén: «Me queria morir!». A morte nem sempre é uma opção.

De um homem nascido em Canelones espera-se que tenha por dentro um chamado de Itália. Em 1956, Júlio chegou a Génova. A linha avançada da equipa dizia-se de supetão como se fosse uma deixa de um filme de Totó: De Rossi, Dal Monte, Macor, Abbadie e Carapellese. O uruguaio dos pés ligeiros tratou de encantar os tifosi do Luigi Ferraris com a sua passada larga, elástica, com o seu drible que ia sendo concebido em plena corrida, com a sua genialidade mágica que confundia e desarmava adversários, com a sua pujança viril capaz de resolver qualquer jogo a qualquer momento. Era perseguido a patadas e ria-se das patadas: «A mi me gusta recibir patadas». E, ferozes, os inimigos voltavam a fazer pontaria às suas canelas finas e aos seus pés mágicos que, na esquerda, desenhavam maravilhas sobre um traço de cal.

Yo quiero morir conmigo/Sin confesión y sin Dios/Crucificao en mis penas/Como abrazao a un rencor», cantava Nestor Marconi, o homem dos Tangos do Sul. Em 1950, Abbadie quis morrer mas a morte não estava interessada nele. Já rondava, peçonhenta e rancorosa, Rubén Morán, comendo-lhe o cérebro com uma tristeza infinita, acabrunhante e incompreensível. Eduardo Galeano, jornalista e poeta uruguaio, deixou-se encantar por Júlio, mas contrariado: «Era adepto do Nacional e fiz tudo para o odiar. Mas El Pardo Abbadie, correndo com as suas botas de sete-léguas, levava a bola para a linha lateral branca e viajava de encontro aos opositores parecendo que nunca tocava nela. E, aí, eu sentia vontade de aplaudi-lo».

 Com a camisola ouro e negro do Peñarol foi um dia ao Monumental de Buenos Aires e toureou todos os jogadores do River Plate com fintas e refintas, deixando-os fora de si, enlouquecidos de raiva, cegos de vingança, de tal ordem que o caçavam a pontapés como se fosse uma ratazana. Abbadie puxava a melena negra para trás e sorria um sorriso franco. Parecia que esperava flores e chapéus e que o inteligente o autorizasse a uma última faena para regressar a casa com rabos e orelhas. Noutra ocasião, no Centenário de Montevideu, dois defesas do Alianza Lima cruzaram as pernas para lhe  impedir a passagem, formando uma parede de carne e ossos. Júlio enrolou a bola nos calcanhares, fê-la passar sobre a cabeça e sobre os peruanos, e recolheu-a nas costas dos opositores espinafrados. Depois escutou, em redor, o som quebradiços das gargalhadas.

Jorge Luis Borges foi o intelectual que mais brilhantemente desprezou o futebol. O seu desprezo nasceu porque o futebol é uma paixão de massas e ele detestava as paixões populares. Por outro lado, detestava os espelhos e a cópula, porque ambos multiplicam as pessoas.

Talvez tivesse detestado Abbadie. Havia nele uma capacidade de se multiplicar e ser múltiplo.  E uma memória aos ziguezagues do momento mais lindo que viveu na companhia de uma bola, contra o Cerro Porteño: «Pasé a diez jugadores, me faltó el arquero. Por ahí tengo el recorte del diario. Cada vez que lo veo, me ganan las lágrimas».
A morte veio buscá-lo tarde. Estava vivo num dia e no outro não. «Esta noche para siempre, terminaron mis hazañas/Un chamuyo misterioso me acorrala el corazón…». O rapazinho que quis morrer aos 20 anos viveu para lá dos 80. Com medo de ir  ao encontro dos que já não estavam em seu redor. Ele, o mágico soberbo do traço branco de cal. Jogando e bailando ao ritmo de um tango do sul: «Alguien chaira en los rincones al rigor de la guadaña/Y anda un ‘algo’ cerca ´el catre, olfateándome el cajón…».

afonso.melo@newsplex.pt