Como se entabula conversa com os sonhos? Como se ganha a confiança desse mundo nebuloso, que parece cheio de um vigor sugestivo e até divinatório, como nos ambientamos às suas indicações face às encruzilhadas que se nos impõem? Como se acede ao poder de interpretação, à capacidade dos sonhos para construir narrativas, levantar um fio de entre o caos? Hoje, há um ressurgimento de uma série de práticas ligadas ao ocultismo, reelaboradas hoje ao sabor das novas formas de espiritualidades, como avulsos elementos de liturgias pagãs. A astrologia tornou-se uma espécie de fenómeno omnipresente com a internet e as redes sociais, e como vincava Christine Smallwood, num artigo saído nas páginas da New Yorker em outubro passado, os millennials não parecem ver qualquer contradição entre usar a astrologia e acreditarem na ciência. Até recentemente, estas correntes de espiritualismo que pareciam entroncar nas modalidades New Age eram toleradas com um certo menosprezo, tidas como formas degeneradas da religião, face à perda de influência dos grandes cultos, e com a precariedade económica e a ajudar a um clima de incerteza. Mas se o género de pessoas que se associava a estas práticas ocultas eram as senhoras de meia idade em túnicas decoradas com estrelas, cabelo num arranjo confuso, sempre a queimar um pau de incenso, hoje são as todo-poderosas marcas que estão a tomar nota do crescente interesse por estas formas de culto que se diluem e adaptam aos desígnios individuais, e um exemplo claro foi a iniciativa da Amazon de enviar ‘horóscopos de compras’ para os assinantes do seu serviço Prime Insider.
A astrologia triunfou numa era em que tudo é veiculado segundo um mesmo grau de importância, aproveitando-se de crendices, superstições e o atabalhoado catálogo de ‘sinais’ que as pessoas buscam para se guiar num tempo de crise e até de pânico em relação ao futuro. Assim, se durante séculos, como nota Smallwood, se os requisitos mínimos para se desenhar um mapa astral passavam por alguma familiaridade com disciplinas como a astronomia e a geometria, hoje, há quem confie nos mapas gerados de forma instantânea por serviços gratuitos na internet. Mas se isto explica a fácil sedução e consequente ubiquidade da astrologia no YouTube, Facebook, Instagram e Twitter, por outro, evidencia também uma forma de desespero e vazio, em que se busca soluções fáceis para problemas complexos, o que nos torna presas igualmente fáceis da velha escola de intrujões, impostores e vigaristas que proliferam nestes períodos.
Mas mesmo numa tão disfuncional família como é a das práticas do oculto há primos afastados, ovelhas negras que se esquivam como podem à ribalta. É o caso do tarô. Com origens bastante profanas, os primeiros baralhos remontam ao século XV e, tal como os comuns baralhos de cartas que hoje usamos, as suas combinações e intrigas eram sustento de hábitos de lazer, passatempos, jogos sociais, vícios bastante enfáticos. Foi seguindo o ocioso investimento contemplativo da arte que as imagens foram ganhando riqueza, alimentando-se da fauna e flora simbólica que tinha à sua volta, incorporando signos alquímicos e ganhando o detalhe que expande o jogo do mistério.
Numa ilustração da própria tendência da imaginação para derivar, deformar e deixar uma esplendente descendência, estão listados hoje cerca de 1.300 baralhos de tarô, com os primeiros tendo aparecido no norte de Itália no final do período gótico e início do Renascimento, tendo a evolução acompanhado as tendências de cada época, de tal modo que muitas das reformulações modernas a originar produtos de merchandising, como um baralho da Hello Kitty ou o de personagens de séries televisivas como Star Trek ou a Guerra dos Tronos.
O período que viu as cartas de tarô espalharem-se pelos diferentes países da Europa, adaptando-se em variações locais, bebendo das tradições diferentes, permitiu essa formação desassombrada, precedendo o momento em que o Tarô de Marselha veio a tornar-se o baralho padrão, adquirindo um prestígio místico entre os pensadores progressistas na França pré-revolucionária – século XVIII –, e foi a partir daí que começou a ser usado como forma de adivinhação e previsão do futuro. E vale a pena notar a correlação entre o uso das cartas nos jogos de azar e enquanto ferramenta divinatória, pois, tal como Mallarmé reconheceu que um lance de dados jamais abolirá o acaso, através desta imersão nesse universo instável e sobrenatural, em que baralho se abre como uma série de portas e janelas, aquilo que se reconhece é a aleatoriedade do mundo, a multiplicidade dos destinos, das probabilidades dos encontros, do jogo combinatório dos significados e das existências.
Se o tarô comparece nessa forma de difusão de um misticismo tão estéril quanto histérico, a leitura das suas imagens exige outro grau de compenetração, e as suas respostas lidam de forma encantatória com a ambiguidade. Assim, ao invés de se reivindicar de quaisquer poderes mágicos, o que se reconhece é a capacidade de desencadear um processo de narração rico e complexo, em que à medida que as cartas vão sendo viradas e as figuras enigmáticas se sucedem, delas vai desentranhar-se uma espécie de relato que depende das capacidades do leitor/narrador.
De resto, há que sublinhar a maravilhosa definição que o poeta, cineasta e apaixonado do tarô Alejandro Jodorowsky deu ao chamar ao baralho destas cartas uma catedral de bolso, ou uma catedral nómada. Sendo reputado hoje como um dos grandes especialistas no assunto, o artista de origem chilena começou a sua iniciação ainda na década de 1950, pouco antes de se mudar para Paris, e durante anos tinha por hábito colecionar baralhos comprados nas suas viagens em diferentes pontos à volta do mundo. Mas foi só na década seguinte, quando visitou um dos seus ídolos, o papa do surrealismo, André Breton, que este interesse ganhou os contornos de uma verdadeira paixão.
Nessa visita, tendo ouvido dizer que o mestre se interessava pelo tarô, levou-lhe um dos mais obscuros baralhos com que se tinha deparado. Segundo Jodorowsky contaria mais tarde, Breton não terá usado de especial cerimónia, e no estilo incisivo que lhe era característico, explicou ao jovem que tinha pela frente que o único baralho que merece ser levado a sério é o de Marselha. Este descende de um tipo particular de cartas que terá surgido em Milão e se tornou bastante popular no final do século XV. Depois, quando chegou a França, foi sendo apurado, adquirindo essas características que o tornam tão estimulantes para quem gosta de extrair metáforas incitantes e explorar possibilidades oníricas. É uma forma de lidar com o sonho, fazer-lhe perguntas, ouvi-lo falar na sua voz tão entaramelada quanto cativante.
Depois do encontro com Breton, Jodorowky deitou fora a sua coleção de baralhos, e acabou por se tornar um tarólogo muitíssimo conceituado, fazendo leituras para estranhos em cafés que acolhiam as suas penetrantes homílias. E tendo levado a sua obsessão de estudioso ao extremo, uma coisa que sempre lhe causou frustração foi nunca ter encontrado um Tarô de Marselha perfeito. Havia aspetos que se tinham perdido, outros que estavam espalhados por diferentes variações do baralho, e, por essa razão, em meados da década de 1990, Jodorowsky decidiu contactar o último descendente da família Camoin, família com históricos laços à origem deste tarô, e que o imprimiam desde o século XIX.
Juntos trabalharam ao longo de uma década para chegar ao baralho ideal, com as suas 78 cartas a funcionarem como uma antologia primorosa dos detalhes apurados ao longo de séculos, e impressas em onze cores. Assim, Jodorowsky ligou-se ao destino do próprio tarô, e em escritos de referência como O Caminho do Tarô, estabeleceu um conjunto de orientações-chave na abordagem a esta estrutura que nos oferece uma odisseia de autoconhecimento. Desvalorizando o atrativo ingénuo do tarô como um meio de adivinhar o futuro, e buscar respostas práticas para este ou aquele problema, Jodorowsky vê no tarô um poderoso meio inquisidor, um jogo tão sério quanto seja o empenho do jogador. Porque se os sonhos nos arrastam no seu caudal, o tarô é ao mesmo tempo a frota que se dispõe sobre as águas e os instrumentos de navegação de forma a definir-se um rumo entre as vagas.