Seis janelas para o estranho universo das cartas

A editora alemã Taschen lança este mês uma edição do Tarot de Dalí. O baralho surrealista é um dos seis que propomos para uma viagem pela história fascinante deste jogo a que já chamaram ‘uma catedral de bolso’.

Seis janelas para o estranho universo das cartas

Tarot Visconti: uma verdadeira jóia de papel

Realizado para o duque de Milão, o Tarot Visconti é considerado o exemplo mais importante e mais antigo de cartas de jogar do século XV. «Durante este período, as cortes italianas, especialmente no Norte de Itália, costumavam competir entre si em luxo e magnificência ao ponto de despender somas exorbitantes na realização de jogos para divertimento dos cortesãos», escreve Giordano Berti na Introdução de O Tarot Visconti (ed. Estampa). «Por consequência, cada uma das cartas deste baralho é uma verdadeira jóia, um trabalho de arte único, resultando de processos complexos», continua o autor. «Estas obras de arte, a julgar pelo seu conteúdo, foram indubitalvelmente concebidas por eruditos humanistas». Embora o tarot seja associado à adivinhação e à crendice popular, não seria esse o objetivo destas cartas, muito apreciadas nos círculos mais requintados da nobreza italiana. De resto, foi precisamente graças à sua preciosidade que o Tarot Visconti sobreviveu à voragem dos séculos.

Livro de Toth: o mito egípcio e a atualização dos símbolos antigos

Se ainda hoje muitos acreditam que o jogo do Tarot teve origem no Antigo Egipto, nas lâminas de ouro sagradas que se guardavam no templo de Toth, o ocultista britânico Aleister Crawley contribuiu grandemente para difundir esse mito. OTarot de Thot, que fez em parceria com Lady Frieda Harris (responsável pelos desenhos), seria acompanhado pelo homónimo Livro de Toth, escrito em 1944, que fornecia a chave de interpretação das cartas. O conjunto, que atualizava os símbolos antigos e lhes emprestava novas conotações, demorou cinco anos a ser terminado, entre 1938 e 1943. Nem Crawley nem Frieda chegaram a ver o baralho editado, o que só aconteceu em 1969, já muito após a sua morte.
Crawley, cujo pensamento amalgamou um conjunto muito eclético de influências – do ioga à alquimia, da Cabala ao rosacrucianismo – foi uma figura célebre e carismática, tendo recentemente integrado a lista dos 100 Grandes Britânicos  da BBC. Correspondeu-se com Fernando Pessoa, com quem teve marcado um encontro na Boca do Inferno ao qual o poeta português não compareceu.

A Folha de Cary, elo de ligação entre Itália e França

A Folha de Cary, elo de ligação entre Itália e FrançOs estudiosos pensam que o Tarot tenha sido inventado no século XV como uma evolução das cartas de jogar comuns ‘importadas’ do norte de África para a Europa no século anterior. 
A enigmática Folha de Cary, uma xilogravura com as cartas ainda não cortadas, constitui um dos mais antigos exemplos do Tarot, e por isso ajuda a esclarecer a difusão deste jogo. «A importância destas imagens assenta no facto de elas constituírem um elo de ligação entre as cartas do tarot milanês e do francês», explica Giordano Berti. Embora apenas apresente seis figuras centrais completas (a Imperatriz, o Imperador, o Papa, o Mágico, a Estrela e a Lua) e fragmentos de doze outras, tem particular interesse para os especialistas, pois permite estabelecer várias semelhanças com o Tarot de Marselha, que viria a tornar-se o baralho ‘canónico’ na Europa. Está datada de cerca de 1500 e pertence à Beinecke rare Book & Manuscript Library, da Universidade de Yale, EUA.

Dalí: as 78 cartas que não apareceram no filme de James Bond 

Tão genial quanto excêntrico e provocador, Salvador Dalí (1904-1989) costumava dizer que o seu bigode era uma espécie de antena para «estar em comunicação com o universo». Tratava-se de uma referência a Giambattista della Porta, o fundador da Magia naturalis, segundo o qual se podia obter inspiração através de estímulos captados pelos pelos.
O fascínio de Dalí pelo universo da magia ter-se-á intensificado devido à relação com Gala, que tinha uma atração declarada pelo misticismo.
O tarô de Dalí – onde o próprio se representou como o Mago e a Gala como a Imperatriz – poderá ter tido origem numa encomenda feita pelo produtor Albert Broccoli para o filme de James Bond Vive e Deixa Morrer. O contacto acabaria por não ter sequência e o baralho surrealista, inspirado em obras-primas da pintura ocidental, não chegou a fazer a sua aparição no filme. Mas Dalí não desistiu de levar a empresa até ao fim. Em 1984, as 78 cartas originais viram mesmo a luz do dianuma edição que esgotou rapidamente.

A linguagem medieval do Tarot de Marselha

O Tarot de Marselha não é na verdade um baralho particular, mas sim um conjunto de baralhos que partilham o mesmo estilo e a mesma linguagem. Entre os exemplos mais antigos (nem todos produzidos em Marselha) encontram-se os baralhos de Jean Dodal (Lyon, 1701-1715), de Jean Noblet (Paris, cerca de 1650) e Nicolas Conver (Marselha, 1760). 
Constituído por 78 cartas – 22 arcanos maiores (como o Mago, os Amantes, o Enforcado, o Eremita, o Louco ou a Roda da Fortuna) e 56 arcanos menores divididos em quatro naipes (correspondentes ao baralho de cartas de jogar que ainda hoje usamos), o Tarot de Marselha serviu de modelo a todos os tarots posteriores. Embora tenha aparecido já na Idade Moderna, os desenhos de recorte gótico, possivelmente inspirados na arte do vitral, denotam uma indesmentível origem medieval. Foi depois este o baralho usado para transformar o Tarot numa prática de adivinhação.

Fantod Pack: talvez seja melhor não lançar as cartas

Com um gosto pronunciado pelo bizarro e pelo obscuro – e ele próprio dono de uma personalidade peculiar –, Edward Gorey foi, mais do que um dos grandes ilustradores do século XX, uma figura de culto. A sua criatividade, aliada a um humor mórbido e refinado, produziram textos e desenhos originalíssimos que hoje continuam a ser objeto de desejo de colecionadores. Na década de 1960 Gorey produziu para a revista Esquire uma série de desenhos do que viria a ser o seu tarô, a que chamou ‘Fantod Pack’ (‘fantod’ designa um estado de ansiedade e irritabilidade. Ao contrário dos tarôs convencionais, o de Gorey possui apenas 20 cartas, com nomes como A Escada, A Cabeça a Arder ou O Rato Valsante. O livrinho que acompanha o baralho avisa: «Agora que tens conhecimento de todas as coisas horríveis que sucederam aos teus amigos e conhecidos durante o ano passado tal como foram rabiscadas no interior dos seus cartões de Natal, não queres saber as coisas terríveis que te aguardam?». Pelo sim pelo não, talvez seja melhor limitarmo-nos a apreciar os desenhos e não chegarmos a lançar as cartas…