A “bofetada” dada por Teerão a Trump foi uma aposta de alto risco

Washington parece ter tão pouca vontade de uma guerra quanto Teerão. Pensa-se que os ataque com mísseis a bases dos EUA tenham sido pensados de maneira a evitar perda de vidas.

A imagem de dezenas de mísseis balísticos a partirem do Irão, rumo a duas bases norte-americanas no Iraque, na madrugada de quarta-feira, deixou o mundo à espera de mais uma guerra brutal no Médio Oriente, onde os muitos aliados de Teerão e Washington lutam há muito por influência. Foi uma “bofetada no rosto” dos Estados Unidos, declarou o Supremo Líder do Irão, o aiatola Khamenei, e apenas uma amostra da vingança pelo assassínio do general Qassem Soleimani, morto na semana passada por drones norte-americanos perto do aeroporto de Bagdade.

“Não sofremos baixas, todos os soldados estão bem”, tanto norte-americanos como aliados, declarou o Presidente dos EUA, Donald Trump, após o ataque. O chefe de Estado prometeu que o seu país vai “impor imediatamente sanções punitivas adicionais ao regime iraniano”, após um raro silêncio no Twitter durante a manhã. O discurso indicou que, por agora, foi posta de lado uma retaliação militar, apesar de Trump ter prometido há dias atingir de forma “muito rápida e muito dura” alvos “importantes para o Irão e para a cultura iraniana”, em caso de ataque a bases norte-americanas.

Com o ataque de ontem, Teerão desmascarou o bluff de Trump, explicou no Twitter Thomas Juneau, professor da Universidade de Otava, especializado no Irão. O regime iraniano considera “que Trump não quer ficar no pântano de uma guerra em larga escala”, assegurou, lembrando que o Presidente dos EUA há muito que promete acabar com o que em tempos chamou “estúpidas e infindáveis guerras do Médio Oriente”. Contudo, “é óbvio que isto é uma aposta enorme, sendo Trump tão imprevisível”, avisou o prof. Juneau.

Apesar do lançamento de mísseis, das promessas de vingança e dos gritos de “morte à América”, Teerão parece não ter mais vontade de uma guerra convencional que Trump. O lançamento de mísseis foi inesperado, dado que a maioria dos analistas contava que Teerão vingasse Soleimani através dos seus muitos satélites na região. Contudo, após os receios iniciais, rapidamente ficou claro que o ataque iraniano não foi desenhado para matar norte-americanos – antes pelo contrário.

Fogo de vista A barragem de mísseis iranianos começou às 1h45 da noite, hora local, e durou cerca de meia hora. Teve como alvo duas bases aéreas, Arbil, no Curdistão, contra a qual terão sido disparados cinco mísseis, e Al-Asad, na província de Ambar, que terá sido alvo de 17 mísseis (ver infografia).

Esta última base não só é um ponto fundamental para abastecimento das tropas dos EUA como também tem valor simbólico: foi palco de uma visita surpresa de Trump ao Iraque, em 2018, juntamente com a primeira-dama, Melania. E quando o Parlamento iraquiano votou a expulsão dos militares dos EUA, devido ao ataque contra Soleimani, Trump recusou sair até ser reembolsado por “uma base aérea extraordinariamente dispendiosa” no Iraque – algo visto como referência a Al-Asad.

Além disso, esta base aérea “é vasta e remota. Ataques podem encontrar ali muito terreno vazio”, escreveu Nic Robertson, correspondente da CNN. Esta área permite que Al-Asad, uma das maiores bases do Iraque, tenha piscinas, restaurantes de fast-food e não uma, mas duas carreiras de autocarro no interior – e facilita que os mísseis caiam no meio de nenhures.

Muitos analistas lembram que Teerão sabia que, de madrugada, a maioria dos soldados norte-americanos estariam a dormir, em casernas fortificadas por camadas de betão armado. As Forças Armadas iranianas também estariam bem conscientes do sofisticado sistema de alerta aéreo norte-americano, permitindo aos soldados correr para segurança antes da queda dos mísseis – como, de facto, aconteceu. Tal foi facilitado pelo facto de os norte-americanos terem sido avisados de antemão do ataque, através de Bagdade, que terá sido informado por Teerão, contaram fontes militares ao USA Today.

“Sabiam que a nossa vingança estava a chegar”, explicou aos jornalistas o ministro da Defesa iraniano, o general Amir Hatami, reconhecendo: “Eles certamente tomaram medidas para impedir vítimas”. Mas Hatami fez questão de salientar que “essas preparações não impediram os mísseis de os atingir”.

Entretanto, logo nessa noite, muitos iranianos saíram à rua, celebrando o ataque como retaliação pela morte do general Soleimani – os gritos de “vingança, vingança” foram lugar-comum entre as centenas de milhares de presentes no seu cortejo fúnebre. Ainda tiveram mais motivos para celebrar quando os média iranianos anunciaram que tinham sido mortos cerca de 80 soldados dos EUA – algo que viria a ser desmentido.

Equilibrismo No Iraque, o primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi condenou a manobra iraniana, opondo-se a “tornar o Iraque um campo de batalha”. Há muito que Bagdade faz equilibrismo entre os seus dois aliados mais próximos, os EUA e o Irão, mas o exercício parece cada vez mais impossível, sobretudo após o ataque contra Soleimani, em que também morreu o influente líder de uma milícia xiita Abu Mahdi al-Muhandis.

Agora, se praticamente todas as milícias xiitas concordam com a expulsão dos norte-americanos, elas dividem-se quanto à vingança contra os EUA. “A vingança pelo mártir Muhandis está a chegar, às mãos dos iraquianos”, prometeu Harakat al-Nujaba, da milícia xiita Hashed al-Shaabi, citado pela AFP. Horas depois, cairam dois rockets Katyusha – arma comum destas milícias – na Zona Verde, em Bagdad, segundo a mesma agência noticiosa.

Já o influente clérigo xiita Moqtada al-Sadr apelou a que as fações iraquianas “não comecem ações militares” para expulsar os norte-americanos, pelo menos “até que todas as opções políticas, parlamentares e internacionais tenham sido gastas”.