Metro e Uber conduzem PJ a trio homicida do Campo Grande

Através dos registos magnéticos dos passes sociais e do ficheiro da Uber, os investigadores reconstituíram o regresso a casa do trio assassino e deslindaram o crime.

Pedro Fonseca tinha um longo caminho pela frente e ainda estava muito longe daquela fase da vida em que os homens sentem o fim a aproximar-se sentindo que não fizeram nem um décimo daquilo que sonharam. Acabara o curso de engenharia informática na Faculdade de Ciências há um ano e, ao contrário de muitos da sua geração, já encontrara trabalho na sua área. Estava satisfeito. Podia mesmo dizer-se que era feliz.

Quando naquele domingo, 29 de dezembro, depois de jantar com a família, decide sair de casa para beber uns copos e espairecer com os amigos num bar próximo da antiga faculdade, o pai, um inspetor-chefe da PJ, ainda tenta demovê-lo, invocando o frio cortante que caíra na época natalícia. Mas o jovem, com a ternura que os unia, zomba dele, recorrendo a uma frase da avó paterna que, em iguais circunstâncias, o preferia preso às suas saias: «Muito boa festa faz quem em sua casa está em paz!».

 

Trio faz primeiro assalto no Campo Grande

Pelas vinte e duas e picos, Pedro enfia-se no Metro perto de casa, na Pontinha, rumo ao Campo Grande. Nos desdobramentos daquele mundo subterrâneo, há vidas que se cruzam. Cerca de uma hora antes, em sentido contrário, da estação do Campo Grande para o Rato, três jovens sorriam, triunfantes. Por razões estratégicas, utilizam aquele meio de transporte com regularidade. Estão na idade perigosa e a alegria neles é um sentimento tribal.  Ao contrário de Pedro, não têm objetivos nem planos para o futuro. Frequentam escolas profissionais onde raramente aparecem. As aulas provocam-lhes aborrecimento e é nos assaltos e rixas que encontram o jogo mais apropriado para passar o tempo. Pedro e o trio acabariam, por mero acaso (esse espaço circunstancial onde ocorre o improvável), por se encontrar pouco depois.

O trio acabara de fugir da zona da Cidade Universitária, onde assaltara um estudante. Filhos de emigrantes guineenses que procuraram em Portugal, sem êxito, uma segunda oportunidade, os três acabaram por crescer nas ruas em bairros sociais da linha de Sintra. São da mesma espécie, sentiam-se sozinhos e juntos faziam o ensaio geral para o mundo do crime, mas ainda lhes falhava o cadastro. Tinham acabado de ‘palmar’ a carteira e o telemóvel de um outro universitário que, ao olhar para o facalhão de cozinha que exibiam, lhes facilitou a vida: o jovem apenas despertou do susto para lhes pedir o cartão de dados do aparelho onde guardava parte substancial do seu mundo. E eles, embalados pelo espírito do poder que junta as matilhas, acharam graça e até tiveram um assomo de generosidade. Um dos elementos retira da orelha um brinco – adorno que supostamente serve para destacar carateres, mas que outrora seria marca de escravidão – enfia-o na ranhura do telemóvel e saca-lhe a memória. Despedem-se com apertos de mão: «Vai em paz mano, até à próxima».

No entanto, temendo um alerta policial, o grupo utiliza o Metro como forma de recuo. Deslocam-se para o Largo do Rato, preparam-se para fazer uns trocos e livrar-se do aparelho para evitarem ser localizados. Mas numa sociedade moderna informatizada, para o bem ou para o mal, não há quem não tenha um chip que muito dificilmente não deixe rasto. O estudante, mal recupera o ânimo, ainda nessa noite apresenta queixa na polícia – e tornar-se-ia uma peça fundamental para reconstituir o percurso de sangue que assinalou essa noite.

 

Pedro Fonseca sai do Metro em direção ao bar

Pelas 23h00, mais coisa menos coisa, Pedro Fonseca chega à estação do Metro do Campo Grande. Não há muita gente na rua, a noite não está escura para esta época do ano e ele não tem razões para sobressaltos. Sabe ao encontro do que vai: esperam-no os amigos. Praticamente em simultâneo, Bacari, Tcherno e Serifo regressam à mesma zona. Corriam mais pela aventura do que pela necessidade e, com o resultado do último assalto, vêm de táxi. Mas, ao contrário de Pedro, caminham à deriva, como as águias à procura da carcaça da presa.

Pedro enceta a curta caminhada que o separa do bar onde o aguardam. No trajeto, talvez o acompanhem as recordações. O passado é uma âncora. Sempre fora irrequieto, cheio de energia. O pai, quando ainda era pequeno, metera-o no karaté. Não o fizera apenas para ele aprender a defender-se, mas para o disciplinar. E talvez até tenha sido por isso que Pedro nunca tenha entrado numa rixa. Preferia fazer rir os outros. Colecionava anedotas para contar ao segurança da escola, sempre atento no seu posto, e depois explicava-se: «Coitado do senhor, está sempre sozinho. Assim, sempre o entretenho».

O respeito pela vida humana fora-lhe incutido pelo pai, que como polícia conhecera os abismos para onde resvalam os homens. E Pedro, que estremecia perante o frio de uma agulha, a hipótese de alguém poder falhar na aposta entre a vida e a morte por escassez de sangue tornou-o dador regular.

 

A cena do crime

Não se sabe onde corria o fio no carreto das suas memórias quando, de repente, é surpreendido: o bando atravessa-se-lhe no caminho, exibe a naifa e pede-lhe para entregar tudo o que tem de valor. Sentem-se os donos da rua e estão habituados à rendição imediata das vítimas. Pedro, que apesar do treino de defesa pessoal até costumava ficar estático em situações violentas, desta vez resistiu. Os três delinquentes, à velha maneira dos gangues nova-iorquinos, não toleravam quem os enfrentasse. Pedro ia de encontro ao território da ira dos outros. Mais tarde, quando o grupo foi ouvido em tribunal, para se livrarem de acusações, as versões desafinaram: afinal até fora a vítima que se atirara de encontro à lâmina.

Os corpos, porém, contam sempre uma história que se sobrepõe à narrativa mais objetiva. O cadáver de Pedro Fonseca apresentava dois golpes compatíveis com a faca de cozinha que mais tarde seria encontrada numa das casas dos inseparáveis amigos: um lanho profundo no peito que lhe atinge os órgãos vitais e acabaria por ser fatal, e um segundo corte de raspão nas costas, quando o jovem tentava escapar, servem de guião aos acontecimentos.

 

O cartesianismo da Polícia

Não se sabe até onde a violência pode levar o homem, mas o medo tem o mesmo caminho sinuoso. Serifo, o jovem de 17 anos que terá espetado a faca, ao aperceber-se que de tanto querer ultrapassar os limites se encurralara, foi o primeiro a debandar, enfiando-se de novo no Metro. Testemunhas aproximam-se, enquanto os outros dois agressores, que até aí se mantinham imóveis como artistas – espantados com a atribuição de um prémio por obra que não era de sua autoria –, despertam com o movimento do gatilho da sobrevivência, e fogem do local.

Em nove dias, a PJ montou o puzzle. A queixa apresentada pelo universitário roubado naquela noite foi o primeiro elo de ligação ao grupo. O intervalo de tempo entre o assalto e o homicídio era curto, e a ligação entre os dois factos é estabelecida. Outras testemunhas visuais confirmam a descrição física do grupo. A cor da pele, ferrete de séculos, fez o resto. Os investigadores chegam a uma conclusão lógica: os rapazes não deviam viver nas imediações daquele lugar – palco de assaltos que nos últimos meses têm amedrontado os estudantes da Cidade Universitária. Os guetos de caixotes de cimento para onde costumam ser lançados estão longe daquela zona nobre da cidade. Também não teriam carro para se movimentar com tanta destreza em tão pouco tempo.

A classificação dos homens faz-se mais pela aparência do que pelas suas qualidades e o raciocínio cartesiano da polícia levanta a primeira premissa: o grupo só poderia ter saído do Campo Grande de Metro, táxi ou Uber, meios que deixam sempre registo. Os autocarros são excluídos. Àquela hora da noite – e depois de um ataque fatal – ninguém em apuros ficaria na dependência dos horários daquele meio de transporte. Num ápice, passam a pente fino as imagens das câmaras de vigilância da estação do Metro, onde os jovens são detetados em momentos distintos: em grupo, pouco depois de terem feito o primeiro assalto, e, mais tarde, apenas um – Serifo –, que se pôs em fuga logo após ter ‘chinado’ Pedro Fonseca.

 

Um vai de Metro e comboio, os outros de Uber

É o trajeto de Serifo que acaba por levar a PJ a aproximar-se da sua morada. Procuram-no no sistema de videovigilância do Metro, de estação em estação, enquanto aguardam que o Metropolitano de Lisboa lhes envie as horas de entrada e saída dos registos dos passes. O jovem assassino, segundo veio a confirmar-se pelo registo magnético, saíra no Areeiro para apanhar o comboio para a linha de Sintra. E que melhor sítio haveria para se esconder depois do que a sua própria casa?

Bacari e Tcherno, os outros dois, optam por outro transporte. A Uber coloca-se como uma hipótese provável para os investigadores: grande parte dos jovens utiliza os seus serviços, através de uma aplicação no telemóvel. Mais uma ponta solta.  A consulta do histórico da plataforma informática da transportadora privada levará a PJ direitinha às suas casas.

Nove dias depois do crime, na passada segunda-feira pela manhã, o bando é detido. Sozinhos, de caras com a polícia, perdiam a dureza gerada pelo espírito de tribo. O crime foi rapidamente assumido, mas cada um tenta salvar a pele com versões desencontradas. A juíza que decretou a prisão preventiva do grupo também não foi no paleio de que fora a vítima quem se atirara para cima da faca, tão-pouco no arrependimento que se esforçavam por demonstrar. Ninguém pode alcançar o que o seu coração não está preparado para reter.