A poeira parece já ter assentado, mas as repercussões da polémica que abalou esta semana o Vaticano deverão estender-se para as reflexões dos próximos tempos sobre o ambiente na cúria. Segundo a imprensa francesa, o livro Des Profondeurs de Notre Coeur, com um texto inédito de Bento XVI em defesa do celibato – numa altura em que é esperada a decisão do Papa Francisco sobre a proposta do sínodo da Amazónia para que possam ser ordenados homens casados em zonas remotas onde não existem padres suficientes – está a ser um sucesso de vendas, o que não é difícil de perceber.
A editora manteve o livro em segredo nas últimas semanas, e segundo o site Croix, as livrarias fizeram até as primeiras encomendas desconhecendo de que se tratava. Mas as perguntas são muitas e vão além do marketing: estaria Bento XVI, que em 2013 renunciou ao pontificado e se comprometeu a manter-se em silêncio, ciente do impacto que teria a sua colaboração com o cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos – conotado com a oposição a Francisco e que pede ao Papa neste livro que vete a possibilidade de exceções no celibato? Tudo não passou de um mal entendido ou houve um complô para condicionar ou afrontar o Papa?
As teorias e análises são muitas, mas o livro chegou às bancas na quarta-feira, como previsto. O turbilhão começou no domingo, quando o Figaro publicou excertos. Um dos chamarizes foi um trecho da introdução, assinada por Robert Sarah e Bento XVI, em que, citando o «não posso ficar em silêncio» de Santo Agostinho, justificam o timing da reflexão em torno do celibato precisamente com a discussão mediática em torno do sínodo da Amazónia, onde a proposta de homens casados poderem ser ordenados padres foi vista como um sinal de abertura para o fim do celibato obrigatório.
Depressa seria questionada a autenticidade da obra, apresentada como um livro escrito a quatro mãos por Robert Sarah e Bento XVI, com alguma imprensa a avançar que ‘fonte próxima’ indicara que o contributo de Bento XVI fora apenas um texto. Sarah, ativo nas redes sociais, começou de imediato a sua defesa. E fez o inesperado: publicou as cartas que Bento XVI lhe tinha escrito e que não deixavam dúvidas de que a colaboração existira – ainda que Sarah não tenha divulgado as suas cartas para se perceber o encadeamento da troca de correspondência. As missivas de Bento XVI que usou em sua defesa também deixam algumas pontas soltas: o Papa Emérito pode ter concordado com o projeto, mas só escreveu mesmo um texto, o seu.
Polémica vs. dom
Debaixo de fogo, o cardeal explicou em comunicado que o desafio foi lançado a Ratzinger a 5 de setembro. Afirma ter dito a Bento XVI que imaginava que pudesse não se querer pronunciar, dada a polémica que as suas palavras poderiam gerar nos jornais, mas insistiu que o fizesse, argumentando que a Igreja precisava desse dom. Na carta de resposta, Bento XVI mostra-se incentivado.
Segundo Sarah, a reflexão ser-lhe-ia enviada a 12 de outubro – durante o sínodo – sendo que a 19 de novembro afirma ter remetido ao Papa Emérito o manuscrito já pronto, incluindo a capa, uma introdução e uma conclusão «comuns», o texto de Bento XVI e o seu, tendo recebido luz verde para publicação a 25 de novembro.
Foi já depois de Robert Sarah publicar a correspondência no Twitter que o Vaticano pôs um ponto final à polémica, com Georg Gänswein, secretário particular do Papa Emérito e prefeito da Casa Pontifícia, a esclarecer que Bento XVI sabia que o cardeal estava a preparar um livro e lhe tinha enviado um pequeno texto sobre o sacerdócio, autorizando-o a usá-lo como desejasse, mas não tinha aprovado nenhum projeto para um livro assinado conjuntamente nem tinha visto ou autorizado a capa, onde os dois aparecem como coautores.
Gänswein e Sarah acordaram que em edições futuras a obra não terá a assinatura de Bento XVI na introdução e conclusões e passará a ter uma capa diferente – aparecendo apenas o cardeal como autor e uma referência à colaboração de Bento XVI. «Foi um mal-entendido, sem questionar a boa fé do cardeal Sarah», rematou Georg Gänswein. Sarah acatou, mas não mudou a sua versão.
O caso recuperou as dúvidas sobre a figura de Papa Emérito e até que ponto precisa de ser regulada. Sobre o celibato, será necessário esperar pela decisão de Francisco. Bento XVI considera que é indispensável, mas os analistas recordaram que, enquanto Papa, admitiu a exceção de os padres anglicanos que se convertem ao catolicismo poderem manter a família. «Independentemente de quais sejam as reais intenções de Ratzinger, tornou-se parte de uma narrativa em que os tradicionalistas querem ‘defender’ o celibato, enfraquecendo a unidade da Igreja», defendeu o teólogo Massimo Faggioli.
Num texto publicado no site Crux, o vaticanista John Allen compara o caso à polémica em torno da alegada aprovação dada por João Paulo II, já debilitado, ao filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, que gerou uma enorme controvérsia em 2003. «Mais uma vez, a maioria das pessoas envolvidas neste debate parecem só apenas ligeiramente interessadas nos factos, e muito mais interessadas em fazer um dos lados parecer mal. E mais uma vez o passo óbvio – que é ir perguntar ao Papa em questão o que queria fazer, abertamente e para que todo o mundo ouvisse – é algo que ninguém parece muito interessado em fazer»
Allen não acredita que o livro venha a influenciar a decisão de Francisco – que já disse não estar de acordo com o celibato opcional, mas defende que o celibato não é um dogma e não excluiu essa possibilidade em lugares mais remotos – ainda assim elenca consequências: por um lado, sai afetada a credibilidade da Igreja, já que deixou a impressão de disputas internas e manipulação cínica; por outro lado, recorda que a instituição do Papa Emérito é nova e precisa de reflexão. E a forma como foi exposto na praça pública também surpreende. Allen recorre a uma passagem de um livro: «Porque é que um homem não ganha nada em dar a sua alma ao mundo inteiro, mas sim aos seus seguidores do Twitter?».
Nas passagens partilhadas por Sarah, que continua a promover a obra no Twitter, Bento XVI defende que a «impossibilidade de um laço matrimonial» nasce espontaneamente da celebração quotidiana da Eucaristia, que implica um estado de serviço a Deus permanente. «O sacerdócio de Jesus Cristo leva-nos a entrar numa vida que consiste em renunciar a tudo o que não nos pertence. Este é o fundamento dos padres para a necessidade do celibato», escreve Bento XVI.
Mas é o cardeal, que diz ter escrito o livro em obediência filial ao Papa, que dirige um apelo direto a Francisco. «Há um laço ontológico-sacramental entre o sacerdócio e o celibato. Qualquer enfraquecimento desse vínculo levaria a pôr em causa o magistério do concílio e dos Papas Paulo, João Paulo II e Bento XVI. Peço humildemente ao Papa Francisco que nos proteja definitivamente de tal possibilidade, vetando qualquer enfraquecimento da lei do celibato sacerdotal, mesmo limitado a uma ou outra região»
«Francisco não vai ceder»
Para o teólogo Anselmo Borges, o caso poderá causar dificuldades a Francisco, mas o Papa não cederá a pressões. E contesta a ideia de um vínculo ontológico-sacramental entre o celibato e o sacerdócio, que diz ser o ponto essencial desta tomada de posição em defesa do celibato obrigatório. «É inadmissível. Assenta na ideia de que através da ordenação, o padre ficaria num grau superior de ser em relação aos fiéis e que o fim do celibato retiraria ao padre este lugar especial sagrado, que o padre não tem. O sacerdócio ministerial é apenas um serviço do sacerdócio real, que é o dos cristãos», defende. «No primeiro milénio houve até Papas casados e nada prova que um padre casado se dedique menos à igreja do que alguém que vive no celibato».
Anselmo Borges considera que houve uma tentativa de manipulação por parte do cardeal Sarah, que se tem perfilado como sucessor de Francisco numa ala mais conservadora, mas concorda que a reflexão deve estender-se à figura de Papa Emérito, que não é a primeira vez que quebra o silêncio – no ano passado publicou um texto sobre os abusos sexuais na Igreja, que associou ao colapso moral da sociedade na década de 60. «O Papa não é se não o bispo de Roma e ao bispo de Roma está vinculada a unidade da fé. Bento XVI é, no limite, bispo emérito de Roma e devia, como ele próprio se comprometeu, remeter-se ao silêncio. É evidente que pode pronunciar-se, mas não como Papa», conclui.