A Passagem: eis uma quimera que durante anos manteve a Coroa de Inglaterra, os seus homens de negócios e os seus marinheiros na periclitante crença de que poderiam atingir a Índia e a China por um caminho que não repetisse a rota de Vasco da Gama. Uma viagem que conduziria os navios pela América do Norte, por entre as ilhas que compõem, hoje, o Arquipélago Ártico do Canadá, e os faria desembocar no Pacífico, mais cedo ou mais tarde. A empresa frustrou-se vezes sem conta graças à ferocidade dos gelos que prenderam muitas expedições durante invernos praticamente insuportáveis. Em 1845, o capitão Sir John Franklin saiu de Londres em direção à Gronelândia, decidido a atravessar a Baía de Baffin, e a procurar uma passagem entre as ilhas de Devon, Cornwallis e Somerset. Os dois navios que comandava, o HMS Erebus e o HMS Terror, ficaram imobilizados no estreito de Victória, perto dos baixios de King William, no território de Nunavut onde vivem os inuítes, membros da nação indígena esquimó. Só dezasseis anos mais tarde foi encontrada uma nota deixada por Franklin com pormenores sobre o triste fim dos aventureiros.
Em 1850, Henry Grinnell, um filantropo americano, financiou uma viagem em busca dos desaparecidos. A bordo de uma das embarcações, o USS Advance, ia o médico dr. Elisha Kent Kane que registou a operação num diário ao qual deu o nome de Adrift in the Arctic Ice Pack. No dia 6 de fevereiro de 1851, contou: «At seven in the evening my spirit standard was at – 40.º. The day, however, have been graced with some hours of sunshine, and we worked and played football out on the ice till we were many of us in a profuse perspiration». É, ainda hoje, a mais antiga referência à prática do futebol no Ártico. O livro do dr. Elisha é fascinante por muitos prismas e há nele outras páginas nas quais destaca a importância que a prática do jogo tinha na manutenção do espírito positivo dos marinheiros que se viam confinados aos espaços brancos em redor dos navios imóveis. Mas escasseia nos pormenores. Ficamos a saber, contudo, que os desafios eram frequentes e animados.
O futebol dos inuítes
Inuíte significa povo na língua inuktitut que se fala em todas as áreas do Canadá a norte da Linha das Árvores, ou seja nas províncias do Labrador, do Quebeque, do Manitoba, do Yukon e de Nunavut. Nunavut: A Nossa Terra. A mais vasta e setentrional de todas as regiões canadenses, com 2.038.777 quilómetros quadrados e menos de 40 mil habitantes. Iqualit, a capital: Lugar de Muitos Peixes. Antiga Frobisher Bay na Ilha de Baffin. Lugar de muito frio e de muito gelo, com temperaturas a atingirem os 50º negativos, em dezembro e em Janeiro, lugar de renas e de bois-almiscarados, lugar de vida dura, de exploração de gás e de petróleo, lugar da caça à baleia, e também lugar de futebol. Precisamente nos mesmos espaços em que o embarcadiços do USS Advance o jogaram 170 anos antes, a Nunavut Soccer Association promove o desporto sobretudo entre os mais jovens. O futebol como arma contra a solidão, contra as depressões, contra a tendência incontrolável para o alcoolismo. Não, as coisas não mudaram assim tanto, afinal.
Em Nunavut a taxa de suicídios é dez vezes mais elevada do que em todo o resto do país. O desporto ajuda a combatê-la. Todos os anos, os Campeonatos de sub-18 de Nunavut chamam a Iqualit dezasseis equipas (rapazes e raparigas) de todo o território. Algumas viajam quatro ou cinco mil quilómetros para lá chegarem. Outras simplesmente não vão. Sobretudo as de Artic Bay e Nanisivik, as zonas mais isoladas: as viagens são caras, os voos são poucos e sempre condicionados pelos melindres da meteorologia. Sarah Cole, a treinadora da equipa feminina de_Artic_Bay, declarou numa reportagem feita pela BBC: «É uma oportunidade única que surge uma vez por ano. Para muitas delas, falhar os campeonatos significa que nunca mais estarão presentes. Uma desilusão terrível!».
A Nunavut Soccer Association é uma das associações que fazem parte da Federação Canadiana de Futebol, parente muito pobre se a compararmos com as de Alberta, Colúmbia Britânica, Nova Escócia ou Terra Nova e Labrador. De tal ordem que nunca conseguiu montar uma equipa para participar no torneio de futebol dos Jogos de Verão do Canadá, uma espécie de Jogos Olímpicos de trazer por casa, a casa dos canadianos, como está bem de ver. Desde 1967 que Les Jeux du Canada alternam nas suas versões de inverno e de verão a cada dois anos. Apesar do enorme entusiasmo que os inuítes sentem pelo jogo, é-lhes brutalmente complicado estabelecerem competições que permitam o desenvolvimento técnico e tático dos seus jovens. Na maior parte do ano, ficam confinados a pavilhões e jogar ao ar livre obriga a tanta proteção contra as baixas temperaturas que dificilmente reconhecemos nos jogadores algo semelhante a um vulgar futebolista.
«I find sports is a really good way to get your mind off things and escape from what’s going on in your actual life», revelava Shawna Kyak, de 17 anos, capitã da equipa de sub-18 de Nunavut no documentário chamado Playing Through Blizzards: Football In The Arctic. No fundo, nada de muito diferente do que falava o dr. Elisha Kane em 1851, ao mesmo tempo que participava nas pelejas que faziam suar em bica o seu grupo de companheiros perdidos. O futebol também pode ser uma necessidade.