As expressões de solidariedade e de vontade de remediação das inquietações da classe média inundam de forma crescente o nosso quotidiano. A classe média formada inicialmente por mercadores que não faziam parte da nobreza, ganhou progressivamente estatuto através da difusão insistente de uma ideologia que valoriza o trabalho intenso e o mérito que lhe estaria diretamente associado.
Com o tempo e a acumulação de capital, os mercadores foram protagonizando investimentos, transformando-se em produtores e mais tarde em rentistas, usando a não pertença às classes párias como estatuto portador de uma certa autoridade moral para uma afirmação social vertida no conceito de meritocracia, enquanto instrumento nuclear da sua ascensão social. Postura que os consagrou como ‘novos ricos’.
O conceito de meritocracia envolve, porém, um duplo sentido, encobrindo o sentimento, concomitante, de que a aristocracia se acha com um estatuto demasiadamente elevado para fazer do trabalho a centralidade da sua existência, uma vez que as benesses de que usufrui, para lá da sua fundamentação da origem, encerram também uma espécie de destino vocacionado para o usufruto diferenciado dos belos e atrativos prazeres da vida. Na disputa de estatutos, a preguiça, o parasitismo, a inveja e a incompetência exibida pelos aristocratas são usadas pelos ‘novos ricos’ em contraponto com o talento, a esperteza, a persistência e o mérito, enquanto ingredientes do seu sucesso, cujas consequências se traduzem na realimentação e extensão do poder de quem detém a riqueza, surgindo o património herdado como fonte de rendibilidades elevadas, a que não é alheia a força da sua dimensão inicial.
Face aos novos desafios, os mais vulneráveis e os mais inseguros refugiam-se inevitavelmente nos medos, resistindo a qualquer mudança que afete, mesmo que levemente, a sua visão de futuro. São muitas as perplexidades com que diariamente somos confrontados. A forma e a quantidade de informação multiplicam-se de modo inusitado nos diferentes planos da vida política, económica e social, e também nas diferentes dimensões geográficas.
Cada um de nós perceciona a sua própria vida pelas notícias e informações a que acede e, ainda, pelas experiências que teve oportunidade de vivenciar, dando significados singulares às alegrias e sofrimentos que integram o inventário das recordações que, por seu turno, ajudam a fixar as baias para a visão do futuro que incessantemente vamos antecipando.
Em contexto de diferenciação social, quanto menor for o controle democrático e a presença de instituições que o protagonizem, maiores serão as divagações e a apropriação de benefícios por parte dos que exercem o controle efetivo do poder. Acresce, que esses grandes protagonistas (antes da queda em desgraça) são recorrentemente apresentados como seres especiais com características muito incomuns, sendo promovidos por grandes mestres em técnicas de comunicação persuasiva e por gurus da felicidade alheia. Para o efeito são utilizados rituais, da mais diferente natureza e proveniência, dando à especulação o estatuto de instrumento preferencial da intervenção, estruturando obsessões como centralidades das dinâmicas de comunicação e, consequentemente, como centralidades de convivência social.
Estamos todos à mercê de demagogos (autónomos e a soldo dificilmente identificados à primeira) de palavra fácil e de imaginação fértil, sempre prontos a construir narrativas à medida das nossas necessidades reais e anseios sonhados. A multiplicação das fontes de demagogia e de poderes paralelos atrapalha cada vez mais o quotidiano, a serenidade e as legítimas esperanças de cada cidadão. Este tempo dá que pensar. A história não se repete, mas há semelhanças inquietantes.