Caso recente e polémico na Holanda – primeiro país europeu a legalizar a eutanásia (2002) – foi o da senhora de 74 anos que, tendo-lhe sido diagnosticada doença de Alzheimer quando acabara de fazer 70, assinou de imediato declaração com consentimento de que a eutanasiassem antes de ser internada numa clínica ou num lar para doentes com demência.
Quatro anos depois, estando a senhora já internada num lar e tendo a doença evoluído significativamente, a filha pediu para que o processo de eutanásia fosse desencadeado. O ‘procedimento’ adotado consistiu, numa primeira fase, na ingestão de um medicamento (sedativo) que devia deixar a senhora inconsciente; porém, a meio do processo, ela acordou e, independentemente do grau de demência, resistiu até onde as suas forças lhe permitiram, ao ponto de ter de ser agarrada pela própria filha e pelo genro, até perder os sentidos e serem-lhe administrados os procedimentos seguintes, até à morte.
O caso acabou em tribunal, defendendo o Ministério Público que, perante a resistência da senhora, a médica que desencadeou a eutanásia deveria ter agido com maior prudência e ter interrompido os procedimentos. Mas a filha e o genro da vítima defenderam a clínica, considerando que esta apenas cumpriu a vontade expressa pela mãe e sogra quando ainda gozava da plenitude das suas capacidades, há quatro anos, e assinou a sua ‘sentença de morte’.
O Tribunal de Haia concluiu pela absolvição, considerando que a lei holandesa fora escrupulosamente cumprida e nada havia a censurar à médica acusada de imprudência.
Este caso relançou um amplo debate na sociedade dos Países Baixos sobre o momento do consentimento da eutanásia e a possibilidade de reversão ou não em casos de pacientes com demência ou desequilíbrios do foro psiquiátrico – até porque, se o consentimento foi dado quando a senhora ainda estava no pleno gozo das suas faculdades, a verdade é que o fez na ressaca da notícia de que estava com uma doença degenerativa e incurável.
Aprovado o Orçamento do Estado para 2020, cinco partidos com assento na Assembleia da República inscreveram na agenda parlamentar a discussão e votação de cinco propostas – do PS, BE, PAN, PEV e IL – de despenalização da eutanásia ou suicídio assistido.
Ora, ainda nem sequer há dois anos, o Parlamento chumbou todas as propostas com vista à despenalização da eutanásia.
Revisitando a campanha eleitoral para as legislativas de outubro de 2019, não pode concluir-se que este hemiciclo tenha mandato para fazer o que se prepara para fazer, nem que o país tenha feito debate bastante e esclarecedor para, sobre esta matéria, agora mandar às malvas regras e princípios basilares – mais do que da própria Constituição, da ética e da moral coletiva.
Muito pelo contrário.
De facto, até aqui, a discussão pública sobre a eutanásia e o suicídio assistido não passou de alguns fora filosóficos, científicos e universitários.
Há uma semana, em douto artigo publicado no SOL, Gentil Martins explicava por que razão nenhum médico que tenha feito o célebre juramento de Hipócrates – e só está capacitado a exercer Medicina quem o faz – pode eutanasiar ou ajudar alguém a suicidar-se.
É uma questão de princípio. Ponto!
Ora, tratando-se de uma questão de princípio que está muito, mas mesmo muito longe de ter tido debate público suficiente e minimamente conclusivo (e, como se vê por este processo no Tribunal de Haia, se calhar nunca será bastante), como raio há uma maioria parlamentar que se autoproclama com legitimidade para decidir sobre a despenalização da eutanásia e cinco-propostas-cinco prevendo a ‘legalização’ da eutanásia ou suicídio assistido?
Como escreveu Gentil Martins, prolongar artificialmente a vida de ser humano é uma coisa, reduzir o sofrimento e dar condições para uma morte digna a quem quer que seja é outra, e tirar a vida a alguém é outra ainda, sendo que esta é simplesmente inaceitável. Seja em que condições for.
A pretexto do respeito pela vontade – a última – da vítima, a lei da eutanásia ou do suicídio assistido é, na sua essência, um ato egoísta de uma sociedade totalmente incapaz de reduzir o sofrimento ou dar uma morte digna aos seus doentes terminais, de bem compensar e tratar os seus idosos mais idosos ou simplesmente de dar novo alento a quem, num momento de solidão ou desencanto, simplesmente quer desistir de viver.
Porventura, até será, sim, uma forma de essa mesma sociedade amoral se livrar de quem já com nada de útil contribui ou acha que já não pode contribuir para ela.
Se há uma linha vermelha que tem de ser intransponível e que não pode deixar de ser respeitada como valor supremo é a vida humana.
Um ordenamento jurídico que permita ou consagre que um ser humano possa ter o poder ou o dever de tirar a vida a outro – seja por aplicação de uma pena, seja por sujeição a uma manifestação de vontade, mesmo que da própria vítima – é amoral e civilizacionalmente retrógrado.
Se a vida humana não merece proteção total e absoluta, o que merece?
Aceitar a negação desse princípio máximo ou ceder mesmo que apenas abrindo uma exceção é dar cabo de um dos poucos alicerces que ainda suportam a Humanidade.
Depois, só o caos.