T emos de saber como funcionamos e como nos mantemos a nós próprios, e temos de amar aquilo que fazemos. Mas um ator também precisa de sorte», disse Kirk Douglas numa citação retirada de The Films of Kirk Douglas, de Tony Thomas (ed. Citadel Press, 1991). «Requer muito de nós trabalhar nesta área. Muitos ficam pelo caminho porque não têm energia para sustentar o seu talento». E energia teve certamente Kirk Douglas para uma carreira de ator que se prolongou mais de 60 anos (e que continuou com a publicação de livros), numa vida que chegou ao fim apenas aos 103.
O ator eternizado no papel do pugilista de Champion, de Mark Robson, de Espártaco em Spartacus, de Stanley Kubrick, de Van Gogh em Lust for Life e de Einar em Vikings, ambos de Vincente Minnelli, morreu na passada quarta-feira, em Beverly Hills, na Califórnia.
Foi em NovaIorque, onde nasceu, a 9 de dezembro de 1916, que passou a infância falando iídiche além do inglês, numa família de imigrantes judeus russos. Issur Danielovitch era o seu nome, que no início da sua carreira na representação viria a ser aconselhado a substituir. Oseu pai, Herschel, vendia trapos de porta em porta, que transportava numa carroça puxada por um cavalo. Eram tão pobres que, recordaria Kirk Douglas em 1988 na autobiografia que trouxe a profissão do pai para o título – The Ragman’s Son (o filho do trapeiro) – que no inverno utilizavam os excrementos do animal como isolamento, para melhor se protegerem do frio. A fé judaica, essa nunca a perderia. Pelo contrário, como é recordado na biografia da sua página oficial, numa fase mais avançada da vida dedicou-se ao estudo do Hebraico – e aos 83 anos celebrou um segundo bar mitzvah.
Quando terminou o liceu, ingressou na Universidade de Saint Lawrence, em Canton, a norte de Nova Iorque. A viagem, fê-la à boleia num camião de transporte de estrume, como recorda o mesmo texto. Foi graças às várias bolsas de estudo que foi obtendo que conseguiu continuar a estudar.
E foi em Saint Lawrence, onde se juntou à equipa de wrestling da universidade (no último ano foi campeão universitário nessa modalidade), que começou a trilhar o seu caminho em direção à representação, com um crescente interesse pelo teatro. Daí que em 1939, depois de se ter formado, tenha continuado a estudar, de volta a Nova Iorque, na Academia Americana de Artes Dramáticas, onde se cruzou com Lauren Bacall – conhecida é a história de quando a atriz, à época ainda um nome desconhecido, lhe comprou um casaco de inverno, que Douglas não tinha como pagar. Também nessa escola conheceu Diana Dill, com quem viria a casar-se em 1943.
Foi por essa altura que mudou o seu nome para Kirk Douglas, aconselhado pela produção de uma pequena peça de teatro da qual seria protagonista.
Esse início de carreira seria contudo interrompido pela entrada dos Estados Unidos na IIGuerra Mundial:estava na Marinha em 1943 quando mostrou aos camaradas a revista Life para se gabar de que conhecia a mulher que aparecia na capa. «Não apenas isso», ter-lhes-á dito. «Vou casar-me com ela». Foi então que escreveu uma carta dirigida a ela que enviou para a revista. Recordando-se dele da escola de teatro, escreveu-lhe de volta, e seis meses depois casaram-se. E à mesma revista contaria o próprio, anos mais tarde, o que sentiu no momento em que reencontrou a ex-colega naquela capa:«Fiquei absolutamente atordoado quando me passaram a revista para a mão».
Em 1944, de regresso a Nova Iorque, pouco depois de o casal ter tido o seu primeiro filho, Michael, Kirk Douglas procurou retomar a sua carreira no teatro. Mas o destino acabaria por empurrá-lo para o cinema – e para Hollywood. O tempo que passara na Marinha foi o suficiente para que Lauren Bacall se estabelecesse como atriz – e foi ela quem insistiu com Hal B. Wallis, produtor de filmes como Casablanca, para que desse ao seu amigo uma oportunidade no casting de O Estranho Amor de Martha Ivers, de Lewis Milestone.
Corria o ano de 1946 e Kirk Douglas fazia a sua estreia no cinema nesse filme protagonizado por Barbara Stanwyck. Daí, rapidamente ascenderia a esse lugar que só as grandes estrelas ocupam, ainda durante a década de 1950. A mesma em que era inaugurado o Passeio da Fama de Hollywood, essa de onde um dia a sua estrela teria de ser substituída depois de, num dos raros episódios do género, ter sido roubada.
Ainda nos últimos anos da década de 1940, entre os seus primeiros filmes contam-se as participações como ator secundário em O Arrependido (1947), de Jacques Tourneur, e A Letter to Three Wives (1949), de Joseph Mankiewicz. O filme decisivo para o salto para o estrelato estreou-se em 1949: Champion, do até então realizador de filmes de terror série B Mark Robson, que protagonizou com Marilyn Maxwell, deu-lhe a primeira de três nomeações para o Óscar de Melhor Ator.
Em Champion, o maior sucesso comercial de Robson até então e filme seminal para a carreira de Kirk Douglas, interpretava o pugilista Midge, num género que esse filme ajudaria a popularizar.
As seguintes seriam por The Bad and the Beautiful – Cativos do Mal (1952), de Vincente Minnelli, e Lust for Life (A Vida Apaixonada de Van Gogh, no título em português do filme também de Minnelli, estreado em 1956), em que fez ele o papel do pintor. Em nenhuma delas chegou ao Óscar mas em 1996, o ano em que Douglas completou 80 anos, a Academia de Ciências e Artes Cinematográficas norte-americana atribuiu-lhe um Óscar Honorário, pelos 50 anos de carreira, como «força criativa e moral na comunidade cinematográfica».
Em 1951, o ano em que se divorciou da primeira mulher (voltaria a casar-se com Anne Buydens em 1954, numa união que mantiveram para o resto das suas vidas), Kirk Douglas fez quatro filmes. O ritmo de várias produções por ano manter-se-ia até à década de 1970. E só na década de 1990 (e, mais, na viragem do milénio) Kirk Douglas abrandaria de facto.
Sobre esse período da sua carreira em que, em poucos anos, foi três vezes nomeado para os Óscares, escreveu David Thomson no Guardian na quinta-feira que «era inquestionavelmente uma estrela, apesar de nem todos os filmes terem sido bem escolhidos». Em 1955 fundaria a sua própria produtora. Pouco depois, protagonizaria Os Vikings (1958), de Richard Fleischer. Por essa altura iniciaria a sua colaboração com Stanley Kubrick nos dois filmes que antecederam Lolita (1962), Paths of Glory (1957) e Spartacus (1960), em que o realizador foi contratado para substituir Anthony Man, e que Douglas protagonizou. Para a escrita desse filme, foi o próprio Kirk Douglas quem chamou Dalton Trumbo, que se tinha mudado com a sua família para o México depois de em 1947 ter sido condenado por desobediência civil. Era um dos dez realizadores e argumentistas na lista negra do senador Joseph McCarthy para a erradicação do comunismo da indústria cinematográfica.
Como produtor, foi também o responsável pela adaptação ao teatro de Voando sobre um Ninho de Cucos, de Ken Kesey. O espetáculo estreou-se na Broadway em 1963, com Douglas como protagonista. Tentou também adaptá-lo ao cinema, sem sucesso, e acabaria a ser o seu filho, Michael Douglas, a produzi-lo, dez anos depois, com realização de Milos Forman.
Ao longo de mais de 60 anos de carreira, participou como ator em perto de uma centena de filmes e séries, produziu três dezenas e realizou Scalawag (1973) e Posse (1975), dois westerns que também protagonizou. Entre 1988, o ano de edição da sua autobiografia, e 2014, de Life Could Be Verse: Reflections on Love, Loss, and What Really Matters, publicou 11 livros.
A sua última aparição como ator foi num filme francês de 2008, Meurtres à l’Empire State Building, um mockumentary de William Karel.
Ao longo de todos esses anos, até à sua morte, na quarta-feira, aos 103 anos, manteve-se casado com Anne Buydens, que completa 101 em abril deste ano. Por altura da renovação de votos que fizeram em 2004, na celebração das Bodas de Ouro, disse Douglas que, entre todos os papéis que desempenhou ao longo da vida, o mais importante foi o de avô dos seus sete netos.