As contranarrativas

Com as redes sociais a divulgarem as contranarrativas e a Europa sem caminho depois do Brexit, os interesses, o Governo, a oposição e até o PR, todos parecem estar agora mais vulneráveis.

Charalambous e Ioannou definiram o radicalismo como uma ideia relacional, ligada ao sistema de valores do momento histórico atual. Quando a esquerda acha que André Ventura ou Joacine Katar Moreira são ‘radicais demais’, funciona como um sistema intolerante e esquece-se que, durante muitos séculos, a ideia do voto da classe trabalhadora, da igualdade das mulheres, dos sindicatos, dos direitos dos homossexuais, etc. também foram ideias consideradas radicais e os seus proponentes sujeitos a abuso verbal, prisão e violência policial. 
 
O radicalismo ao longo da História de Portugal foi muitas vezes precursor de transformações políticas, assumindo a forma de revolta inorgânica, típica do ‘povo miúdo’, ainda que quase sempre manifestantes e ativistas tenham sido excluídos do ‘contrato social’ – e as suas motivações, as suas narrativas e as suas histórias não tenham sequer ficado registadas.
 
Há exceções, como no final da 1.ª Dinastia ou na revolta contra os Filipes ou depois, contra os franceses ou já no período liberal, onde as contranarrativas assumiram o papel de História.
 
Com efeito, no fim da 1.ª Dinastia, o povo assume um papel disruptor no sistema feudal, fazendo nascer uma identidade nacional que ainda hoje persiste. Matoso diz que «o sentimento de nacionalidade e de patriotismo é gerado por efeito de oposição a um estrangeiro, (…) quando guerras e invasões põem em perigo a nossa terra, a nossa gente, a nossa história». Na crise de 1383-85, não será difícil encontrar essa matriz. O papel popular nas revoltas de Lisboa será o modelo e o detonador das insurreições populares no Porto, Santarém, Estremoz, Portalegre, Évora, Elvas ou Beja, evocadas por Fernão Lopes.
 
«Esta linha, real ou imaginária, que o patriotismo desenha na identidade individual e coletiva pode talvez aproximar-se daquela que opõe duas mentalidades ou conceções de lealdade (uma nacional, em ascensão, e outra feudal, em declínio)», escreveu António José Saraiva. 
 
Não é diferente também na revolta contra Olivares. No século XVII, como caracterizou Hespanha, a resistência popular é «um movimento sem forma nem cabeça, tumultuário, embora de violência extrema, de uma violência de bestas ou, pelo menos, desses homens que não são feitos senão para obedecer, a que Aristóteles se referira. As razões da sua eclosão são normalmente aquelas que afetam os grupos mais pobres da população: as crises de abastecimento, o agravamento dos impostos sobre bens de consumo (…) ou apenas boatos da sua iminência; em suma, aquilo que os pobres sentem, nas suas necessidades mais básicas, como um sintoma do mau governo». O seu objetivo é a correção desse mau governo, normalmente ao nível mais imediato dos responsáveis administrativos locais, pois o rei ainda era visto como garantia de justiça, embora eventualmente condicionado pelo desconhecimento ou por conselheiros corruptos. 
 
Mais tarde, as revoltas contra os franceses, e sobretudo, a Maria da Fonte e a Patuleia, no século XIX, mantêm o mesmo padrão inorgânico e uma contranarrativa radicalizada que o establishment indignado é obrigado a integrar.
 
No século XX, o colapso, por exemplo, do PSD, em 1994, está ligado ao levantamento popular e bloqueio da Ponte, por causa das portagens.
 
Hoje, a culpa ainda é dos polícias da Esquadra mais próxima ou das assistentes sociais que persistem em não ver os ‘abusos dos ciganos’. 
 
Mais uma vez, a revolta é uma manifestação das classes mais pobres e a sua contranarrativa está a ser ostracizada. Os comentadores fixaram-se em peculiaridades – excessos de linguagem, cinismo, falta de humildade, etc. – e posicionaram os manifestantes fora dos limites da sociedade aceitável: o manifestante ou o ativista é sempre visto como fora-da-lei, um intruso que não deseja participar do ‘contrato social’ vagamente definido. É esse o sentido da expulsão de Joacine do Livre, mas é também o da narrativa dominante contra Rui Pinto. 
 
Como previu Page, «os poderes dominantes sempre procurarão retratar os ativistas como figuras não integradas e perigosas. Da mesma forma que, ao longo dos anos, os tempos de insurreição são acompanhados por uma fetichização da aplicação da lei e uma crescente disposição para tomar medidas contra essas outras figuras – incluindo os manifestantes». 
 
Hoje, se os jovens e as classes médias emigram em face do mau governo (e o recuo do PSD no IVA da eletricidade só confirma a falta de alternativas políticas), a indignação dos mais pobres, dos que já não podem emigrar, está a crescer nas periferias e pode voltar a escrever a História. 
 
Bem pode o primeiro-ministro classificar a visibilidade dada aos partidos radicais como «subversão da representação democrática expressa na Assembleia da República por esta via mediática». Com as redes sociais a divulgarem as contranarrativas e a Europa sem caminho depois do Brexit, os interesses, o Governo, a oposição e até o Presidente da República, todos parecem estar agora mais vulneráveis. 
 
Rui Teixeira Santos