«A vida não é mais do que uma contínua sucessão de oportunidades para sobreviver».
Gabriel García Márquez
No exercício de responsabilidades governativas, no âmbito da definição, construção e concretização de uma política pública para a imigração, tive muitas oportunidades de conhecer, de auscultar, de pedir opiniões e propostas, e de contraditar vários responsáveis diplomáticos e consulares (sobretudo dos países com mais emigrantes em território português).
Bem como vários estudiosos do fenómeno migratório e muitos dirigentes das várias comunidades imigrantes.
Ouvi muito e estudei ainda mais o fenómeno e as políticas públicas para as migrações, existentes em várias geografias nos vários continentes.
Eu e as minhas equipas conhecemos muita gente verdadeiramente empenhada em contribuir para que em Portugal o extremismo não tivesse caminho de progressão nestas matérias.
Os recentes episódios ampliados sobremaneira mediaticamente, relacionados com as posições radicais (na forma e no conteúdo) quer de Joacine Katar Moreira quer de André Ventura, fizeram-me recuar no tempo.
E tenho presente o que uma dirigente histórica da comunidade africana, Alcestina Tolentino, cabo-verdiana, várias vezes genuinamente preocupada, me disse: «Senhor secretário de Estado, temos de fazer tudo para não alimentar os extremismos de filhos e netos de imigrantes».
Disse-o muitas vezes. A sua preocupação tinha a ver com a possibilidade de existirem atitudes, posturas, discursos, propostas radicais de membros das comunidades negras imigrantes que acabassem por estigmatizar e alimentar ódios e vinganças primárias contra os membros dessas mesmas comunidades. Ela sabia o que dizia. Porque conhecia muito bem os perigos daí resultantes – de isso ser o rastilho, o alimento, para o extremar de posições anti-imigrantes, anti-negros, etc.
Joacine Katar Moreira é o que é. Goste-se mais ou menos dela. Pelo que se tem visto e percebido, assumiu no espaço público e no espaço institucional uma agenda a que não estávamos habituados: a defesa de causas – como me dizia esta semana um ex-aluno moçambicano – «à bruta e como se estivesse no século passado». Estética e pessoalmente escolheu o papel não só pessoal mas também institucional (membro de um Parlamento de um país europeu) de ser uma voz anticolonialismo e pró minorias étnicas (apesar de este termo em bom rigor merecer ser cada vez mais revisto).
Com propostas como repensar a bandeira portuguesa, pedir para devolver os bens às ex-colónias, etc., etc. Por tudo isto, é hoje dentro e fora do Parlamento uma espécie de extrema-esquerda ‘casual chic’ africana. No bom e no mau sentido. E, ao assumir essa condição, transformou-se num alimento politico e mediático que André Ventura provavelmente há muito desejava e até suspirava por que aparecesse. É uma espécie de ‘colinho’ do líder do Chega, que entre vários tipos de ziguezagues, no auge do hiper tempo mediático do Luanda Leaks, vê cair-lhe do céu uma ‘amiga’ de extrema esquerda. Que nem os seus amigos polícias de extrema-direita lhe tinham conseguido ainda arranjar.
Curioso é também ver como as corporações mediáticas vigentes andam tão atarantadas com a contenda entre Joacine (e a extrema-esquerda) e Ventura (e a extrema-direita). Umas vezes seguem a moda do ‘jornalismo de manada’ e arrasam ambos, promovendo-os extraordinariamente pelo caminho; outras vezes vão assumindo o seu lado ideológico de cultores dos valores da esquerda radical e da extrema-esquerda caviar.
Mas, de uma coisa julgo estar certo: a refrega – não só mediática mas institucional – entre Joacine e Ventura tem tudo para acabar mal. Para ambos. Para Portugal. E para os imigrantes.
Alcestina Tolentino tinha mesmo razão. E bem avisou. Sobretudo as comunidades que ela representava. O radicalismo é muitas vezes o caminho para a fragilização de quem o pratica. E com poucas exceções, não resolve problemas nenhuns. Antes pelo contrário, só os agrava. Como está à vista e é o que tem acontecido.
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