O debate instrutório do caso Marquês teve início esta tarde com o Ministério Público a a pedir que todos os 28 arguidos vão a julgamento – durante várias horas, foram desmontados os argumentos dos requerimentos de abertura de instrução dos diversos arguidos. Por entre explicações de como fortunas foram usadas para salvar a jóia da coroa, e os riscos de se usarem despachos de outros países para travar investigações como a investigação a José Sócrates, foram vários os pontos da acusação explicados pelos procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto. Dizem ter noção de que esta é uma acusação difícil de ler, ainda que afirmem que foi mais difícil de escrever, e atacam a defesa de Sócrates por ter posto em causa a distribuição do processo em 2014 ao juiz Carlos Alexandre: “Não há irregularidade”.
Para o Ministério Público a defesa de Carlos Santos Silva, considerado testa-de-ferro de José Sócrates, não tem qualquer razão nos argumentos que usou para por em causa as averiguações preventivas, feitas antes da abertura da investigação formal que ficou conhecida como Operação Marquês. Lembrando que em 1991 se discutiu se as comunicações bancárias às autoridades relativas a determinadas operações deveriam ser obrigatórias ou facultativas, o procurador lembrou que se optou por uma obrigatoriedade.
“A comunicação às autoridades passaram a obrigatórias até para resolver problemas entre os bancos e os clientes. Não representam uma denúncia, apenas uma análise de um risco. A comunicação recebida pelo MP foi apenas o de uma análise de risco. O trabalho seguinte é a identificação de um objeto susctivel de ser um objeto processual penal. A comunicação não é uma suspeita criminal”, disse, esclarecendo que foi esse o trabalho desenvolvido pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal.
“O facto de a Unidade de Informação Financeira (UIF) estar apenas numa polícia [a PJ] faz de Portugal um caso único, daí a necessidade de que o MP tivesse acesso a essa informação. É assimq ue desde o primeiro momento o MP desenvolve o trabalho: a UIF faz um trabalho de Itelligence, e o MP o Follow the Money [seguir o rasto do dinheiro]”, disse o magistrado que liderou a operação Marquês, deixando um alerta: “Espero que quem suscitou as dúvidas perceba que que aquele trabalho é um trabalho sozinho com dois polícias para recolha de prova documental tendo em vista formular uma decisão sobre se merece ou não ir para inquérito. Não se coloca uma situação de um trabalho policial”.
Ainda em resposta ao Requerimento de Abertura de Instrução de Santos Silva, Rosário Teixeira lembrou que a primeira comunicação que envolvia Santos Silva foi “feita pelo Banco de Portugal (BdP) no âmbito do RERT I”. “Nada disto é estranho, estranho é, aliás, porque é que o BdP não fez isso na adesão ao RERT II”, acrescentou.
E sublinhou ainda ao risco acrescido que os RERTs e os Vistos Gold representam: “O BdP comunica a dizer que não sabe que espécie de dinheioro é este, se é apenas por não ter sido declarado ou se por outra razão. Isto passa-se em práticas de risco aceites pelo proprio Estado, como as autorizações de residência. Os riscos que comportam os vistos gold fazem com que haja bibliotecas de informação”.
E apesar de a primeira comunicação sobre Santos Silva ter sido feita em 2005, não houve um vasculhar policial da sua vida, defende Rosário Teixeira. No que toca ao relatório da UIF de julho de 2013, relativo ao processo de averiguação PA 806/2013, esclarece que a informação era parca: “A propria informação da UIF era expressa das contas e da realidade declarativa. A informação era tanta que não nos foi possivel fazer a ligação entre Carlos Santos Silva e um Carlos S que aparecia na operação MonteBranco, que estava sob investigação”.
E concluiu: “Em 19 de julho de 2013 decidimos que relativamente à posição de José Socrates não tinhamos qualquer elemento que permitisse formular uma suspeita, ao mesmo tempo que dizíamos no mesmo despacho que era preciso ver as incongruencias entre as contas [de Santos Silva] e o que era declarado”.
A terminar a análise do requerimento de Santos Silva o procurador deixou uma mensagem sobre a investigação do DCIAP: “Foi um trabalho de transparência que não tem nada de oculto. E foi eficaz”. Também respondeu ao facto de se criticar o facto de ter sido a PSP e a Autoridade Tributária a coadjuvarem os trabalhos: “Se o MP é uma magistratura, ele pode escolher o órgão de polícia criminal com quem trabalhar”.
Mesmo perdendo, a Lena ganhou
Quanto ao Requerimento de Abertura de Instrução de Joaquim Barroca, antigo adminsitrador do Grupo Lena, que pôs em causa a existência do crime de corrupção, o Ministério Público reagiu, lembrando que as funções de “primeiro-ministros são um núcleo abrangente, suscetível de ser qubrado para crime de corrupção”.
Afirmou ainda que a corrupção não pode ser entendida como um ato linear: “Aplicação deve ser entendida como a compra da disponibilidade para quando for necessário. E o que é facto é que a lei não é feita, pese embora as várias alterações, [para situações de] compra ato a ato. A não ser o coitado das contraordenações estradais. Este viciar da própria personalidade resulta evidente das próprias escutas em que são interlocutores Carlos Santos Silva e Joaquim Barroca. O primeiro consegue facilmente convencer, dizendo que há alguém, a que às vezes chama chefe, que pode intervir e resolver problemas”.
Com alguma ironia, o procurador salientou mesmo que da prova recolhida resulta que para o Governo de Sócrates não havia “mais nenhuma empresa no mundo para tratar do problema da habitação social na Venezuela sem ser a Lena.”
E mais, disse Rosário Teixeira, também no TGV “garantiu-se que o equilibrio do risco fosse feito com uma completa inclinação para cima do Estado”: “Mesmo perdendo o concurso, a Lena ganhou”.
Respondendo a José Sócrates, que ontem disse que o Grupo Lena tinha apenas 13% do consórcio, o magistrado atirou: “Não são os 13% [que está em causa], mas a capacidade para conseguir soluções engraçadas como esta”.
E também não deixou escapar a justificação de diplomacia económica dada ontem pelo ex-primeiro-ministro: “Transformar diplomacia económica em interesses privados merece a nossa censura e é isso que está aqui em causa”.
Mas sobre Joaquim Barroca foi destacado também a sua ingenuidade. “Barroca foi útil porque era fácil pegar nele e ir à Suíça”, disse Rosário Teixeira, adiantando que “confrontado com os movimentos na Suíça durante o inquérito não conseguiu explicar o que lá tinha feito”. “Ainda assim, em nosso entender, essa ingenuidade não leva a que se possa excluir o dolo relativamente ao crime de branqueamento. Porque a quantidade de dinheiro que circulou nas suas contas e o destino que teve, como a conta de Armando Vara, é algo que significa o comprometimento em aceitar fazer passagens de dinheiros pelas suas contas, sabendo a origem ilícita desse dinheiro”, afirmou o magistrado.
O risco de se anular investigações com despachos estrangeiros
Foi na resposta ao Requerimento de Abertura de Instrução do arguido Helder Bataglia que entrou em ação o procurador Vítor Pinto, que recusou todos os argumentos da defesa sobre a incompetência das autoridades portuguesas para julgar os crimes imputados a Bataglia. O procurador explicou que grande parte dos milhões passaram por entidades bancárias portuguesas, e que no fim do esquema de circulação o dinheiro foi, em parte, entregue em numerário a José Sócrates.
“Parece-nos manifesta a prática de atos de branqueamento e de ocultação, cuja responsabilidade criminal é atribuida a Helder Bataglia. Por isso parece-nos haver competência da Justiça portuguesa”, disse.
Sobre o facto de parte dos crimes terem sido investigados e alvo de um despacho de arquivamento dfas autoridades angolanas, o MP explicou que o despacho de arquivamento angolano refere-se a operações que já estavam à data a ser investigadas em Portugal e é já posterior à acusação portuguesa: “Parece-nos que nao faria sentido que as autoridades angolanas pudessem arquivar factos cuja apreciação cabe à lei penal portuguesa, sob pena de se encontrar forma de arranjar despachos lá fora” sempre que se quisesse travar uma investigação em Portugal.
Uma acusação “difícil de ler”
Quanto aos argumentos da ex-mulher de José Sócrates, os procuradores defenderam-se da acusação de que produziram uma acusação ininteligível: “Sabemos que é uma acusação dificil de ler, mas é ainda mais dificil de escrever”.
Quanto ao arguido Rui Mão de Ferro, Rosário Teixeira explicou que a investigação concluiu que a sua empresa RMF só tinha um cliente, as empresas de Carlos Santos Silva: “É uma manobra de branqueamento de capitais”.
A fortuna para salvar a jóia da coroa
Sobre o requerimento de Henrique Granadeiro, Rosário Teixeira considerou que se trata de uma total teoria da conspiração. Colocam “o MP a ter informações da justiça Suíça das mais variadas formas, quando o que esteve em causa foi a possibilidade de ligação e contactos diretos entre os elementos do MP”, sublinhou.
E no que diz respeito às críticas de que houve documentos que não foram exibidos à defesa, o procurador também foi perentório: “O que o MP fez foi não mostrar previamente ao interrogatório os documentos de que dispunha, mostrou no decorrer do interrogatório. O que fez está sustentado”.
O magistrado referiu ainda que Salgado “pagou fortunas porque queria salvar a joia da coroa, que era a Portugal Telecom” e descreveu como uma guerra o que se passou com a Sonae: “É isso que o leva a fazer uma guerra tremenda à OPA da Sonae. A parti do início de 2006 a história da OPA foi a crónica de uma morte anunciada”.
Diz ainda que depois da compra de parte da PT pela Visabeira, Berardo e Ongoing, Salgado passou a ter um controlo superior ao dos 10% que oficialmente tinha: “No final deste processo Salgado já controla 30% do capital do PT”.
Foi ainda referido o investimento no Brasil como sendo algo que foi desenhado por Salgado assim como o desfecho do negócio, a que Rosário Teixeira chamou “o triste fim”.
E sobre Zeinal Bava, Rosário Teixeira elogiou as capacidades de gestão para deixar claro que o MP não acredita na tese de que se enganou na data de um documento de identificação.
Recorde-se que o contrato assinado entre Zeinal Bava, antigo gestor da PT, e a sociedade offshore Espírito Santo Enterprises, que o Ministério Público (MP) considera ter sido forjado, contém um pormenor que não passou despercebido ao juiz Ivo Rosa, que conduz a instrução do processo Operação Marquês.
O documento que justifica a transferência de 25 milhões de euros da offshore para Zeinal Bava, e que tanto Ricardo Salgado como Bava garantem ter assinado em 2010 – o MP diz que só o foi após a detenção de José Sócrates –, contém nos dados que um dos cartões de cidadão foi emitido em 2014 – ou seja, quatro anos mais tarde.
Ivo Rosa deu conta do pormenor e emitiu no ano passado um despacho, no qual refere que esta incongruência escapou ao Ministério Público. O magistrado deu, ainda assim, oportunidade ao antigo gestor da PT para apresentar uma justificação para este desfasamento, nomeadamente se se tratou de “um lapso de escrita”. Algo que Zeinal Bava confirmou.
" Zeinal Bava é bom nos investimentos, teve rendimentos na Suíça em períodos de crise, não acredito que se tenha enganado na data de um documnetno de identificação”, disse Rosário Teixeira.
Prova não está contaminada
No que toca ao Requerimento de Abertura de Instrução de Armando Vara, o Ministério Público deixou claro que “nenhuma prova destes autos está contaminada pela destruição das escutas” no âmbito do processo Face Oculta.
E sobre a alegação da defesa de que não existe crime de corrupção, os procuradores deixaram um desafio: “Bastará ler com alguma atenção a narrativa factual da acusação […] para facilmente se concluir em que factos [assenta a prática de tal crime]”.
Distribuição a Carlos Alexandre foi regular
O procurador Rosário Teixeira começou esta tarde por se pronunciar sobre o Requerimento de Abertura de Instrução de José Sócrates, afirmando que não existiu no entender do Ministério Público qualquer irregularidade na distribuição manual da Operação Marquês ao juiz carlos Alexandre em setembro de 2014. Ainda que frisando que o ato fora totalmente estranho ao Ministério Público, o magistrado que liderou a investigação ao ex-primeiro-ministro esclareceu que não estava uma distribuição – uma vez que o caso já estava nas mãos do juiz – mas apenas uma nova afetação por conta da entrada de um novo magistrado no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) e com vista à divisão de trabalho.
“Não era a primeira distribuição deste inquérito, ocorre em setembro quando o TCIC passa a ter dois juizes. Foi estranha ao MP. Mas, sobre esse ato tomámos posição já e o entendimento base é o de que não estamos a falar de uma distribuição em sentido técnico, mas associada a um começo da causa. Por via da distribuição de serviço encontrou-se um critério, procurou-se um critério. As regras foram aprovadas pelo Conselho Superior da Magistratura, ora um juiz ora outro. Penso que dentro desse critério de afetação se atribuiu ao senhor doutor Carlos Alexandre”, disse, separando este caso das suspeitas de irregularidades na distribuição de processos no Tribunal da Relação de Lisboa.
O procurador foi ainda mais longe e começou a sua intervenção no debate instrutório referindo que no que toca ao juiz natural a distribuição “não é o único critério”. “Há tribunais onde só há um juiz. Um sorteio não é um elemento essencial. Aliás, [neste caso] ao ser novamente distribuído a um outro juiz poderíamos estar a falar de um desaforamento… Penso que não há, por isso, qualquer irregularidade”.
Recorde-se que ontem José Sócrates comparou a distribuição manual feita em 2014 a Carlos Alexandre com as alegadas distribuições irregulares descobertas recentemente na Relação de Lisboa. Também a defesa já havia pedido nulidades na operação Marquês devido ao processo ter sido atribuido manualmente ao juiz Carlos Alexandre.
Na operação Marquês estão acusados 28 arguidos – 9 deles empresas. Em causa estão os crimes de corrupção passiva e ativa, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada, falsificação de documentos, abuso de confiança e peculato e posse de arma proibida.
Todas as fotografias presentes neste artigo foram capturadas pelo fotógrafo António Cotrim, da agência Lusa