Entre as seduções do capitalismo, não se pode descontar a sua facilidade para erigir mitologias, mas também estas estão sujeitas à precariedade. Tal como acontece com o dinheiro, o que chega facilmente, facilmente também se perde. Morreu no passado domingo, um dos grandes deuses desta precária mitologia. Jack Welch, o homem a quem a revista Fortune, em 1999, chamou «o gestor do século», tinha 84 anos, e desapareceu no dia 1 na sequência de uma falha renal. Nas duas décadas do seu reinado na General Electric (GE), esta cresceu 29 vezes, tornando-se a segunda maior empresa do mundo – atrás apenas da Microsoft. Quando Welch assumiu a presidência, em 1981, a GE valia na bolsa 14 mil milhões de dólares, e em 2001, quando se reformou, estava nos 410 mil milhões. Na altura em que se afastou, deixando o cargo de CEO e chairman, levou uma soma estarrecedora – 417 milhões de dólares – a título de recompensação. Foi o maior prémio financeiro, mas não provocou escândalo numa altura em que os principais títulos que acertam os tambores do liberalismo económico não foram minimamente comedidos nas loas que teceram ao líder que transformou a cultura empresarial norte-americana.
Welch tornou-se o rosto de uma ideia de prosperidade infinita, o equivalente de um xamã do capitalismo, com o tipo de influência que levava a que os vários presidentes dos EUA, desde Reagan até Trump – de quem, além de amigo, Welch foi apoiante em 2016 –, gostassem de gravitar à sua volta. Foi um ídolo para os gestores de todo o mundo, uma espécie de messias da financeirização da economia mundial, tendo desempenhado um papel crucial na forma como as empresas vieram a tornar-se corporações tentaculares numa expansão por várias áreas de negócio e que, hoje, leva a que muitas delas tenham mais influência e dinheiro do que nações inteiras. De resto, se sob a sua liderança a GE se transformou num titã, o legado de Welch tem vindo a ser reapreciado desde a crise financeira de 2008, até porque, desde então a empresa passou a valer um quarto do que valia há 20 anos, com um avaliação que hoje se fica pelos 94 mil milhões. Se é certo que os gestores que sucederam a Welch foram responsáveis por uma série de desastrosas decisões, foi ele quem traçou o destino da empresa ao apostar na diversificação dos investimentos. Aliás, em grande medida, o crescimento exponencial da GE só foi possível porque foi projectada na linha da frente da especulação financeira. Assim, a sua gestão pautou-se não apenas por drásticos cortes na força laboral – que passou de 400 mil para metade em alguns anos –, mas por integrar outros negócios, desde o sector imobiliário, a aeronáutica e a geração de electricidade, a computação, passando ainda pelos media, com a compra da RCA, com a qual ganhou o controlo de empresas como a NBC e a Universal. Estes investimentos na televisão e no cinema viriam a revelar-se desastrosos, mas, em 2001, logo após ter-se reformado, Welch deu uma série de entrevistas nas quais é se percebe que o fenomenal culto que se erigiu à sua volta o convenceu de que tinha uma visão infalível nos negócios. «Muitas vezes fui desafiado com a afirmação de que não poderia chefiar uma rede de televisão se nada sei de dramas e comédias. A minha resposta é simples: também não entendo nada de turbinas ou máquinas de lavar», disse Welch à revista VEJA. «Entendo o funcionamento da alma humana. Isso basta para gerir qualquer negócio».
O próprio New York Times que afiançava que Welch apareceu como «um revolucionário na gestão, tendo defendido, ao longo dos anos em que dirigiu a GE, mudanças radicais que levaram à destruição da tónica de complacência que antes vigorava». Para se ter uma imagem de um antes e depois de Welch, basta dizer que se podem creditar a este guru dos negócios o ter feito a apologia da flexibilização e precariedade, de tal modo que, antes era possível trabalhar a vida inteira numa empresa, ao passo que, hoje, já é uma sorte conseguir ter um contrato de trabalho. Aqui ficam, por isso, as devidas aclamações, na hora da morte, a este visionário do crescimento infinito, um dos homens que mais fez para nos entregar à era do colapso em que vivemos actualmente. E não deixa de ser indicativo, o facto de Donald Trump ter sido um dos que primeiro veio louvar Welch na hora da despedida. «Não havia líder empresarial como ‘neutron’ Jack. Foi meu amigo e meu apoiante. Fizemos negócios maravilhosos em conjunto. Não será esquecido», escreveu o presidente norte-americano no Twitter. A alcunha ‘neutron’ remete para uma dessas oraculares noções que Welch impôs na hora de decidir se uma área de negócio lhe convinha ou não. Se era possível deter uma posição de liderança, era para avançar, se não, mais valia bater em retirada. Era a chamada «bomba de neutrões», essa que devasta tudo, mas que não mata. Assim, descendente de irlandeses, este filho de um motorista e de uma doméstica, deixa uma herança de 750 milhões de dólares à mulher e aos quatro filhos, e sai aplaudindo o corte de impostos que beneficia as grandes empresas e as grandes fortunas, como esses que, depois de beneficiarem dos mecanismos de ascensão social que fizeram dos EUA a Terra Prometida, logo cortam a luz, e deixam o elevador encravado.