Ficava atrás das câmaras, coisa rara para uma mulher daquela altura, e foi nessa posição que se tornou pioneira. Não só como fotógrafa, a única mulher alguma vez contratada na era dos grandes estúdios de Hollywood, entre 1920 e 1960, mas como mestra da arte de, através da imagem, construir a verdadeira (e glamorosa) aura de estrela tão característica dos atores da chamada era de ouro de Hollywood. Falamos da fotógrafa norte-americana Ruth Harriet Louise (1903-1940), a única mulher que alguma vez chefiou um departamento de fotografia de um estúdio nessa altura, a Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), e que entre 1925 e 1930 trabalhou exclusivamente nessa casa. «Ficou de certa forma esquecida, mas foi uma fotógrafa muito importante. Foi a única mulher, de sempre, a trabalhar na era dos grandes estúdios de Hollywood [entre 1920 e 1960], foi empregue por eles para tirar os retratos», conta ao telefone Simon Crocker, presidente da Fundação John Kobal. «Ela foi muito importante porque ajudou a MGM a criar a imagem de Greta Garbo ou John Gilbert», nota. Apesar do talento e do ascendente que conquistou, o seu percurso na MGM acabaria por ser breve e ter um desfecho sem magia. «Era uma mulher de negócios extremamente boa. Acontece que foi forçada a sair da MGM porque a mulher do diretor de produções, Norma Shearer, que era uma grande estrela, queria que outro fotógrafo viesse para o estúdio, George Hurrell, um fotógrafo brilhante. De certa forma foi corrida, o que foi muito triste. Ela saiu do estúdio e tornou-se freelancer, casou-se, teve filhos e acabou por morrer, nova, no nascimento do segundo filho. Mas nos cinco anos em que esteve na MGM foi muito, muito influente».
São histórias dentro da história e que podem agora ser visitadas na exposição Hollywood Icons: A Fábrica de Estrelas, que abriu ontem portas no Centro Português de Fotografia (CPF), no Porto, e por onde ficará até 7 de junho. Com curadoria de Simon Crocker e Robert Dance, a exposição, uma parceria entre a promotora portuguesa Terra Esplêndida e a Fundação John Kobal, traz 161 retratos de estúdio de alguns dos maiores nomes da história do cinema. Imagens que daqui a pouco se tornarão centenárias, mas que continuam a exercer um fascínio magnético entre os mais novos. «O estilo de fotografia que começou em Hollywood nos anos 30 ainda tem influência em fotógrafos de moda de hoje», reconhece Simon Crocker.
Clarence Sinclair Bull, Eugene Robert Richee, Robert Coburn,William Walling Jr, John Engstead, Elmer Fryer, Laszlo Willinger, A.L. ‘Whitey’ Schafer, Ted ou ainda a já devidamente apresentada Ruth Harriet Louise contam-se entre os nomes de mais 50 fotógrafos que se juntaram à máquina de Hollywood para lançar para o estrelado nomes como Marlene Dietrich, Joan Crawford, Clark Gable e Cary Grant, logo nos primórdios do cinema sonoro, terminando esta viagem feita de imagens a preto a branco com atores como Marlon Brando, Paul Newman, Marilyn Monroe, Sophia Loren e Marcello Mastroiani, já na fase do pós Guerra.
É destes ícones a quem tantas vezes os ciclos da estética vão beber inspiração que se faz a mostra, mas, para lá do pó de arroz, esta é também uma oportunidade de perceber como, afinal, se fabricava uma estrela. Assim, a exposição traz uma sala inteiramente «dedicada aos fotógrafos e ao processo de criação de estrelas, uma verdadeira ‘linha de montagem’ para a fabricação de entretenimento, glamour e fama», precisa a organização.
Kobal, um homem singular
Não é a primeira vez que a Fundação John Kobal traz a Portugal uma visão do seu acervo. Já o tinha feito em 2013, com Made in Hollywood, que por essa altura esteve patente na Fundação D. Luís I, em Cascais. E, a julgar pelo espólio massivo, ainda há muita matéria por explorar. «Há muitas imagens que ainda não mostrámos. Temos qualquer coisa como 90 mil negativos», precisa Simon Crocker, lembrando como é recorrente olhar-se este legado precioso e encontrar-se, à luz dos tempos que vão correndo, sempre um novo foco de interesse.
Uma tarefa que não seria possível caso não tivesse existido um personagem chamado John Kobal (1940-1991), que em 1990, depois de décadas a dedicar-se ao estudo da história do cinema e a recolher as imagens que a contavam – e de ter escrito ainda mais de trinta livros sobre o tema, entre os quais The Art of the Great Hollywood Portrait Photographers e People Will Talk – resolveu criar a fundação homónima. Simon Crocker, seu antigo antigo agente, preside a instituição desde 1991 e recorda a história de um homem peculiar, cuja vida é também apresentada em vídeo nesta mostra do Porto.
«Era uma personagem extraordinária. Era muito alto, bem parecido, tinha uma vozeirão. Não passava de todo despercebido, mesmo numa sala cheia, era mais alto do que a maioria das pessoas. E tinha uma voz mais alta. E falava, falava… Era impossível pará-lo quando falava de algo por que se sentisse apaixonado, quer fosse ópera, pintura, teatro», recorda Crocker, lembrando a curiosidade intelectual daquele que foi um dos seus grandes amigos. Nascido na Áustria, John Kobal foi primeiramente ator, antes de se tornar especialista no estudo do cinema, caminho que percorreu de forma autodidata. «Tinha saído da escola muito cedo, aos 17 anos. Não foi para a universidade, e foi uma pessoa que se instruiu a si própria. Era uma personagem incrível, alguém que não se conseguia esquecer. Digamos que se tivesse conhecido seis pessoas memoráveis na vida inteira, ele era alguém que estaria no topo, ou perto do topo, dessa restrita lista».
No fim da vida, sentiu a necessidade de dar continuidade ao seu trabalho. «Quando ele estava a morrer, percebeu que queria que o legado dos fotógrafos continuasse vivo, formámos a Fundação», sintetiza. John Kobal doou a sua coleção inteira – no total, cerca de 80 mil fotografias e 90 mil negativos.
Hoje, a Fundação abre o seu acervo a exposições como a esta que agora chegou ao Porto – e cuja parte da bilheteira reverterá a favor da Casa do Artista – enquanto se dedica fundamentalmente a apoiar fotógrafos em início de carreira.