Moçambique enfrenta uma tempestade perfeita. Os jihadistas de Cabo Delgado, a província mais a norte do país, tomaram um quartel em Mocimboa da Praia, esta segunda-feira, onde hastearam a bandeira do Estado Islâmico (Daesh). Dois dias depois invadiram Quissanga, mais a sul. Ao mesmo tempo, há ataques armados noutras duas províncias, Sofala e Manica, no centro do país, por dissidentes da Renamo, enquanto Maputo se prepara para a pandemia de covid-19 e a recessão económica que a acompanha.
«O que francamente me assusta é ver a relação que o grupo de Cabo Delgado manteve com as populações locais», disse ao SOL Salvador Forquilha, diretor do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE). Em Mocimboa da Praia e Quissanga há relatos dos jihadistas serem recebidos com aplausos, apesar das atrocidades – foram encontrados corpos nas ruas de Mocimboa da Praia, de civis e militares, alguns algemados, contaram à Lusa. «É um ponto de viragem», assegura o investigador, co-autor do relatório ‘Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique’, de 2019.
«Quando as populações locais começam a olhar para estes grupos como vindo salvar a situação, dá para imaginar para onde isso pode caminhar», avisa Forquilha. Com mais apoio local vem maior recrutamento, menos denúncias, mais olhos sobre as tropas moçambicanas e a capacidade destes grupos desaparecerem entre a população. «Fica muito mais complicado combatê-los», teme o diretor do IESE.
Contudo, muitos habitantes vivem aterrorizados: os Médicos sem Fronteiras falam de pelo menos 700 mortos desde 2017, o início da insurreição. Mais de 100 mil pessoas foram deslocadas, segundo números da ONU, e todos os dias chegam mais refugiados à capital de Cabo Delgado, Pemba.
‘Riqueza do mundo’
Mocimboa da Praia pode ser uma vila à beira mar, com pouco mais de trinta mil habitantes, remota e rodeada de mato, mas o Governo moçambicano dificilmente se pode dar ao luxo de ignorar a insurgência que fervilha à sua volta: ali perto ficam enormes prospeções petrolíferas, disputadas por gigantes como a Total, Qatar Petroleum, China National Petroleum Corp e a ExxonMobil.
Aliás, esta semana a ExxonMobil adiou um investimento de 30 mil milhões de dólares (cerca de 27 mil milhões de euros) na produção de gás liquefeito na região. Segundo a Reuters, o motivo foi a instabilidade económica criada pela pandemia de coronavírus.
Se Moçambique, um país extremamente pobre, com um PIB per capita de 413 euros e uma desigualdade gritante, quer ser o próximo grande jogador no mercado energético – já é referido assim na imprensa internacional, graças às suas reservas provadas de mais de 2,8 biliões de m3 de gás natural – Cabo Delgado é prioritário.
Mas a província é rica noutros recursos, de pedras preciosas a madeira: o tráfico destes é a grande fonte de financiamento dos grupos jihadistas, apurou o IESE. Algo que leva muitos a relacionar a insurgência mais com questões económicas que religiosas.
Os próprios jihadistas parecem ter consciência da fama que têm. «Meus irmãos, não aceitem ser enganados. Nós não estamos a lutar pela riqueza do mundo», negou um deles em Quissanga, cuja esquadra foi saqueada. No vídeo, divulgado nas redes sociais, o interlocutor fala português, entre expressões árabes. O rosto está tapado, as ruas vazias. «Como Allah diz, quando você quiser ser islâmico, primeiro tem que morrer a lutar por Allah».
A insurreição ‘se alimenta a partir do próprio Estado’
A afiliação dos insurgentes de Cabo Delgado – anteriormente conhecidos como Al-Shabaab – ao Daesh traz vantagens a ambas as partes. Por um lado, a insurgência ganha projeção internacional, tornando-se um polo de atração maior para combatentes estrangeiros, que já começavam a chegar à província. Por outro, a organização internacional ganha uma filial em crescimento, de que bem precisa, após a queda califado na Síria e Iraque – a agência noticiosa do Estado Islâmico, a Amaq, cobre com atenção os ataques em Moçambique.
O Daesh nem sequer tem de investir materialmente em Cabo Delgado. «A nível de material de guerra, o grupo se alimenta a partir do próprio Estado moçambicano, com o que consegue capturar», explica Forquilha. Em Quissanga, vídeos dos jihadistas mostra uma pilha enorme de espingardas e AK-47 a ser carregada numa camioneta.
Quem foi lançado contra esta ameaça foram sobretudo jovens militares moçambicanos, com pouca experiência, acabados de sair do treino. «Dá para perceber o desânimo, muitos pediam acompanhamento psicológico, pelo que viram e enfrentaram», conta o diretor o IESE, que entrevistou vários militares, após regressarem de Cabo Delgado.
Nas histórias que escutou há pontos comuns. Para lá da falta de meios e coordenação, os soldados «muitas vezes caíam em emboscadas que não sabiam explicar» – a suspeita de que colegas vendiam informação ao inimigo era constante. Não ajudavam os relatos de deserções, «porque o outro lado pagava um pouco mais», menciona o investigador.
Seria inesperado que estes militares tivessem sucesso contra um grupo que dificulta a vida até aos russos da Wagner, uma empresa acusada de fazer o trabalho sujo do Kremlin, contratada para proteger as petrolíferas. No ano passado, pelo menos sete destes mercenários fora mortos em emboscadas em Cabo Delgado, quatro deles decapitados, segundo o Moscow Times.
‘Não vou poupar mais ninguém’
Cabo Delgado não é a única preocupação dos soldados moçambicanos. Após uma longa, sangrenta e intermitente guerra civil, foi assinado um acordo de paz entre o partido governante, a Frelimo, e a Renamo, permitindo que cinco mil guerrilheiros desmobilizem e integrem as forças de segurança. Nem todos os ex-combatentes da Renamo o querem: dissidentes, liderados por Mariano Nhongo, continuam entrincheirados nas matas da Gorongosa.
«Agora não vou poupar mais ninguém: autocarros de passageiros, homem ou mulher, vou bater. Já não há mais brincadeiras», prometeu Nhongo à Lusa, após os novos deputados da Renamo tomarem posse, em janeiro. Ataques nas estradas nacionais EN1 e EN6, em Manica e Sofala, bem como a postos da polícia, já fizeram dezenas de mortos.
Não dá para esticar os meios de Moçambique, que se prepara para a pandemia de covid-19. Foi suspensa a emissão de vistos, as escolas estão fechadas, bem como muitos serviços – mas já há sete casos registados e avisos de que o frágil sistema de saúde não vai aguentar. Suspeita-se que o primeiro infetado tenha sido o próprio edil de Maputo, Eneas Comiche, após uma visita a Londres: outros casos, de gente com menos meios, continuarão por identificar, dada a falta de testes no país.