Eduardo Carqueja dirige o serviço de Psicologia do Hospital de São João e tem estado a coordenar a resposta a esse nível no hospital que nas últimas semanas lidou com o maior número de casos de covid-19. Na urgência, todos os profissionais têm já um psicólogo atribuído a quem podem ligar. Alguns estão já há várias semanas sem ver as famílias, para evitar o contágio. Saber que podem pedir ajuda é a preocupação da equipa de 26 psicólogos, que tem apoiado colegas, doentes e famílias.
Os primeiros casos de covid-19 surgiram na região norte e no São João, enquanto hospital de referência, acabaram por ser dos primeiros a sentir esse embate. Ajude-nos a fazer uma visita guiada ao hospital neste momento.
Mudou muito, para não dizer tudo. As estruturas tiveram de se adaptar a algo que é invisível mas que nos pôs todos em alerta. Temos desde logo uma tenda no exterior, como se vê noutros hospitais, os circuitos de entrada são diferentes e temos menos pessoas no hospital, porque muita atividade foi suspensa.
Nota-se o silêncio.
Sim, é um deserto. Normalmente o hospital tem em presença física cerca de 5500 funcionários, mais 3000/4000 doentes, mais estudantes, estamos a falar de um hospital com 9000 pessoas e neste momento somos muito menos. Para quem fica, o silêncio e o vazio incomoda. Tem havido um alargamento das estruturas internas para receber covid-19 e nesta altura já temos doentes infetados noutras áreas. Esta semana tivemos uma senhora que entrou com uma fratura do úmero. Começou a tossir. Fizeram despiste de covid e era um caso positivo. Num caso destes temos uma doente que já passou por um conjunto de colaboradores e isto gera naturalmente receio entre os profissionais.
Vimos como a situação evoluiu nos outros países, mas a rapidez com que evoluiu cá é surpreendente mesmo para quem está no terreno?
Não é que não se estivesse a contar, mas é uma situação de tal forma imprevisível que a certa altura mais que preparação há reação e tentar antecipar. Os diretores de infeciologia foram fantásticos, temos tido uma administração que apoiou desde o início as alterações e que valorizou a intervenção psicológica. A opção foi desde o início fazermos sobretudo um acompanhamento à distância, por telefone. Tivemos de encontrar novas estratégias de comunicação por que temos pessoas mais velhas e por vezes a questão da tosse e falta de ar implica que falemos por sms. Com toda a humildade, é bom ver que esses protocolos que começámos a definir para dar algum suporte emocional e psicológico a estes doentes e também aos profissionais estão a ser usados ou adaptados um pouco por todo o país. Neste momento estamos num segundo nível que é ajustar os protocolos de intervenção para situações especificas, por exemplo um doente oncológico que seja diagnosticado com covid-19.
Estamos perante uma doença que é ligeira para a maioria das pessoas, mas que mesmo nesses casos e na população em geral causa uma enorme ansiedade. Sentem esse medo nos doentes?
Sim, há esse receio por ser nova e pela rapidez com que pode causar danos e evoluir. Ao mesmo tempo temos a questão de pensarmos que muitos casos ao mesmo tempo se tornam mais difíceis de gerir e vemos o que se tem passado lá fora, que nenhum sistema tem capacidade para isso.
Tudo isso se reflete na forma como se encara o diagnóstico?
É curioso porque tem havido uma mudança de olhar. Os primeiros doentes tinham muito um sentimento de culpa, porque tinham sido os causadores de contágio para a família ou para os amigos. Agora a culpabilidade está menos presente mas há em alguns casos uma raiva dirigida a quem lhe passou, às vezes pela omissão. Ainda ontem falava com um doente que é médico e tinha estado com pessoas que omitiram que tinham estado fora do país numa zona afetada. Nesta fase de mitigação, em que há transmissão na comunidade, não se coloca tanto a questão de quem passou a quem, mas começa a ver-se a preocupação nos doentes de como vai ser quando saírem dali, como vai ser a sua situação económica. Vemos pessoas que não estão a trabalhar, empresas que fecharam. O medo continua mas tem havido esta flutuação emocional e começa a haver um medo do futuro, não é só o medo do eu que estou infetado e agora.
Como se gere esse medo na intervenção psicológica numa altura em que não há certezas?
Sobretudo dizendo que é importante ficarmos no aqui e no agora. Dizer às pessoas para verem quais eram os seus medos quando ficaram com a doença e pensarem em como se sentem agora. Se se sentem melhor, foquemos aí. Os medos vão mudando. O que virá a seguir vai depender de fatores que não são só do doente, chegará a altura em que o enfrentaremos. No fundo temos de ajudar as pessoas a subir os degraus desta evolução mas sentindo cada degrau.
Sendo o conselho que dão aos doentes, é válido para todos?
Sim, se só tentamos pensar no que vai acontecer a seguir é o pavor. Se há altura da vida em que temos de viver o aqui e o agora é esta. Não sabemos, por mais que se queira, o que vai ser daqui por um mês ou dois. Tínhamos previsto 15 dias de contenção e isolamento, mas seguramente não vai ser suficiente.
Tem havido alertas de que, independentemente de qual vier a ser a estratégia, a pandemia pode durar meses.
Sim é nesse sentido que tem de haver este acompanhamento das pessoas e a Ordem dos Psicólogos Portugueses tem feito um excelente trabalho disponibilizando vídeos que podem ajudar a lidar com esta situação. Os profissionais de saúde que estão infetados também precisam desse acompanhamento. Um profissional que sigo em casa dizia que não se estava a imaginar a regressar já. Não tem de o fazer. Outro colega dizia-me há dias isto é uma provação, mas temos de passar. Há reações diferentes que dependem de muitos fatores. Colocam-se depois as questões de fim de vida, as pessoas pensarem se é isto que as vai matar. Sabemos que há a idade e comorbilidades são fatores de risco, mas são receios legítimos.
E que deixam as emoções de todos à flor da pele.
Sim. É um momento difícil mas com aspetos gratificantes. Neste momento somos todos os heróis mas ao mesmo tempo de uma fragilidade tremenda. Uma catástrofe, por exemplo os incêndios que vivemos, está plasmada numa identidade, foi ali que aconteceu. Isto não, não conseguimos ver quem nos provoca isto mas vemos o impacto enorme nas pessoas. Torna tudo mais difícil. Conversava nestes dias com a filha de uma doente em num estado grave e falávamos de não se poder despedir da mãe. Todos os processos de luto estão a ser reajustados.
Trabalha normalmente com doentes em fim de vida. Como se gere agora essa necessidade de distanciamento?
É um desafio brutal. Como é que nós, que incentivamos o afeto, que as pessoas estejam próximas, temos de dizer agora “não venha por amor”. Temos de o fazer.
As pessoas têm aceitado?
Esta senhora com quem falava estava consciente, tem tido informações objetivas. Temos também tido o cuidado de tranquilizar as pessoas que ouvem as informações dos outros países, que se tem de optar por deixar morrer um idoso e dizer que isso não está acontecer com os doentes. É um medo que as pessoas têm, que a cama seja preciso para outro, que o ventilador seja para preciso para outro. Neste momento não está a acontecer isto, de todo.
Mas é um momento em que pode existir maior solidão no fim de vida. Como estão a conseguir gerir isso?
Esta senhora de que falava conseguiu ir dois minutos perto da mãe. Nem que seja pela janela, dentro destas situações tem de haver algum humanismo. Esta senhora dizia-me, a minha mãe é uma mulher de afetos, não os tendo provavelmente vai morrer mais cedo. É dramático, mas temos de conseguir ir para a vida, pensar no que foi a vida. Se calhar será uma reflexão que teremos para a frente. Todos sabemos que na vida não devemos deixar coisas para trás e é isto que se coloca aqui. Uma pessoa conseguir pensar será que preciso de me despedir do meu pai hoje?
Muitas pessoas que trabalham em cuidados de fim de vida falam do tabu da morte. Esta crise vai mudar a consciência da morte?
Se mudássemos a nossa consciência da morte mudávamos a vida toda. É algo que eu espero: que, no meio desta tragédia toda, quando se for espremer, não só saiam só amarguras, saiam coisas que nos ajudem a ser mais humanos. Ser solidário é extremamente importante mas passa. Veja os incêndios, mobilizámo-nos, houve alguma alteração na maioria das pessoas? Com todo o respeito por toda a gente, não. Isto toca-nos a todos no nosso âmago, pelo imprevisto e pela rapidez.
Temos de enfrentar a incerteza.
Sim, tudo se torna secundário, ficamos remetidos às nossas casas, quem as tem. Temos a tecnologia que podemos usar, e ainda bem, mas era importante que ficasse alguma coisa e que víssemos a vida como é ela, imprevisível, que a qualquer momento pode acontecer algo que nos muda. Quando saímos de casa na vida sem covid não sabemos se chegamos a casa mas toda a gente pensa que vai chegar a casa. Agora não poder haver as mesmas despedidas, os funerais são mais rápidos, tudo isto nos irá marcar.
Que casos o têm marcado nestas semanas?
Para algumas pessoas é uma surpresa terem alguém que lhes ligue para casa a perguntarem se estão bem. Um doente perguntou-nos se podíamos falar com a esposa, que estava lá em casa, mas isolada dele. Temos de conseguir dar este apoio e adaptar-nos às questões que vão surgindo. Ainda esta semana uma colega da equipa de psicologia percebeu que o doente estava a ter dúvidas sobre uma medicação, a isso nós não conseguimos responder. Mas criámos canais de comunicação para a equipa de enfermagem e equipa médica que permite colocar questões e passado meia hora o doente estava a ter a resposta. Isto é uma intervenção psicológica estruturada? Não é. Mas é um suporte que vai colocar este doente numa estabilidade emocional maior. É algo a que nós portugueses não estamos muito habituados mas neste momento é fundamental, dentro do caos, termos alguma organização. Por exemplo no hospital temos uma linha de apoio psicológico com vários, mas achamos que é preciso ser proativos e por isso já atribuímos um psicólogo de referência a cada profissional da urgência. São 200 pessoas que estão ali na frente e se precisarem sabem que estamos ali.
Os profissionais têm pedido ajuda?
Alguns sim, mas às vezes as pessoas ficam inibidas, ficam à espera que passe. Ainda existe a ideia que se pedirmos ajuda parece que somos fracos mas isto é como os carros, temos de pôr gasolina. E por isso a nossa ideia é que se formos proativos conseguiremos chegar mais perto dos colegas e eles vão sentir que são alvo de cuidado.
Como está a moral das tropas?
Por um lado sentem que estão a ser muito úteis mas também estão exaustos. Se antes desta situação caótica o limite já era muito reduzido em alguns profissionais, com esta exigência é muito maior. Dizia-me esta semana um enfermeiro que estava a fazer turno atrás de turno porque há colegas infetadas no serviço e é preciso assegurar a resposta que estava exausto. Bastava olhar para ele para ver que estava, mas ele dizia-me estou mal e não sei se estou mais cansado por isto ou por não ver a minha filha de três meses há não sei quantos dias.
Há profissionais no hospital que não estão com a família há quanto tempo?
Alguns há algumas semanas, outros há pelo menos uma semana. Tem havido um cuidado de prevenção, algumas famílias foram para fora e tivemos a possibilidade de criar uma estrutura de apoio, há alojamentos locais para que os profissionais de saúde não vão a casa. Tudo isto é emocionalmente é difícil e queremos que os profissionais de saúde, apesar de tudo, tenham tempo para descansarem. O problema aqui é que numa maratona sabemos que são 40 e picos quilómetros, que aos 10 quilómetros há uma pressão, depois há outra, e isso pode ser mais ou menos controlado no esforço que se faz durante a corrido. Estando delimitado há uma estratégia de tempo. Aqui não sabemos o tempo que isto vai durar nem em que condições vamos estar, se vamos fazer a maratona a certa altura com uma lesão muscular, se vamos ser contagiados, e isto deve levar a que os profissionais de saúde quando é repouso, tentem mesmo repousar. Temos tentado ajudar com alguns vídeos com música e algumas indicações para relaxamento.
Sem ser por covid, nota-se maior procura no serviço de psicologia por pessoas em crise?
Neste momento as consultas externas estão suspensas e estamos a fazer acompanhamento por telefone. Não tenho dados. Claro que é algo que nos preocupa, não tanto agora, mas quando isto abrandar. Num pico destes estamos numa dimensão de sobrevivência. Pode haver algumas situações, sobretudo se se prolongar muito tempo, mas depressão, ansiedade e crises de pânico tenderão a ser mais visíveis quando isto abrandar.
Vai ser preciso reforçar a resposta em saúde mental.
Sim. Não falando do futuro, como defendendo, temos de nos ir preparando porque o desafio vai ser muito grande. Com o nível de recursos que temos, não é possível. É algo que nos vai obrigar a transcendermo-nos. Não vai chegar o profissionalismo, terá de haver maior humanismo. Vai ser muito exigente para todos, acho que nos vai continuar a desafiar muito tempo e espero que para a vida toda.