Um amigo escrevia um dia destes: «todo o cuidado é pouco e, às vezes, nenhum». Aconselhei-o a fazer disto um post no Facebook. Porque é muito bem apanhada a frase: temos de ter muito cuidado contra uma coisa sobre a qual não sabemos praticamente nada. E por mais cuidado que se tenha, todo o cuidado é o mesmo que nenhum. Com um índice de propagação de 3, cada pessoa pode, ao fim de dez iterações, infetar 59.000 pessoas. Eu fiz as contas e até deu mais. Mas felizmente há curvas de Gauss e coisas assim. Com a pele das mãos já no osso, é a nossa omnipotência a bater com a cabeça na real impotência humana. Noite alta penso que tudo não passa de uma conspiração dos chineses para afundar o que resta do resto do mundo; se isto fosse um thriller – e quem pode garantir que o não seja? – seria a ditadura chinesa a principal suspeita. Sempre achei curiosa esta fé nos números emitidos por uma ditadura cuja Pide obrigou a retratar-se o primeiro médico que avisou a comunidade internacional. Sonho com pequenas víboras amarelas, mas meio broncas, que tento espezinhar de pantufas. Se, por outro lado, isto fosse uma experiência de manipulação social para testar a resiliência do sistema financeiro sempre apoiado no Estado, também segue o guião à risca. Se fosse uma experiência de crowd control, também não estaria mal. Por enquanto, são quatro da manhã e é tudo ficção científica: a ameaça invisível, a contaminação de tudo, zombies desorbitados de máscara e touca de banho. Lembro mais uma vez o sketch dos Monty Python, a Morte apontando a mousse de salmão: «It´s the salmon mousse! It´in the salmon mousse!».
Depois do pequeno almoço começo a pensar dentro do esquema do post do Facebook: alarmismo humorístico, em fundos amarelos e vermelhos, sempre com um pequeno twist. «A cura para a claustrofobia? Tornem-se agorafóbicos.» Controlo-me, o humor em tempos negros fia muito mais fino ainda. Oscilo entre: isto passa e tudo será como dantes, mas pior do que dantes. E: a gente habitua-se a tudo. Diz-se que Wall Street considera ‘mass murder’. É Ubu no seu melhor. Mas agora não é farsa, é uma hecatombe e estamos a vivê-la. Penso sobretudo nas crianças e na horrenda lição de vida que lhes estamos a dar. Crianças, nada de contacto humano! Mandam-me pelo WhatsApp um ‘abraço virtual’. Aviso que o próximo já leva um tabefe virtual.
Só estou autorizada a ver notícias às oito da noite. Por essa altura já recebi duzentas e cinquenta mensagens em todos os graus de alarme e fantasia. Médicos e enfermeiras partilham confidências sobre o estado dos hospitais. Eu conheço o Garcia de Orta no pico da gripe sazonal, atravancado de macas até à porta das urgências. A não ser que ponham os doentes por camadas, não vejo maneira de organizar o espaço. Daí o aviso: morram em casa. De resto, na televisão parecem-me todos muito chegadinhos. A Merkel no meio dos ministros, a Senhora da Europa aos beijinhos ao senhor dos óculos da Europa? A Hillary Clinton e o Jimmy Fallon não estariam perto demais? E os ministros estão sentados na distância de segurança, mas à saída já está tudo ao molho. Arranjo todas as desculpas para não sair. Há muito pólen, está muito frio, está muito quente. E embora toda a gente saiba que o calor mata o vírus, o ar que respiramos está visivelmente envenenado.
Mas não é uma guerra, embora pareça. O vírus faz o pleno de todos os medos e fantasmas da nossa era: a solidão humana, pela primeira vez na História, aparece muito nítida. O medo do contacto, o horror do outro, coisas do tempo da Sida, ‘as gotículas! as gotículas!’, a metáfora da doença como ajuste de contas. Lembram-se daquele dito abstrato «nasce-se e morre-se sozinho»? Agora é concreto. E com o pretexto de protegermos os nossos pais, os mais velhos, condenamo-los a morrerem sozinhos e a ficarem mortos sozinhos e a serem queimados sozinhos. Há coisa mais triste? Há, é morrermos nós também. Diante dos olhos, como bússola, apenas estes pensamentos: o vírus é virulento mas a mortalidade é baixa; há muitos assintomáticos que são todo um outro problema; o vírus não tem agenda política nem moral, não se trata de um castigo de Deus, embora possa tratar-se de um descontrolo hormonal da Natureza; isso é que seria interessante, ouvir e seguir os cientistas quando eles propõem medidas para contrariar os efeitos das alterações climáticas e não apenas nos estados de emergência. Mas vivemos de crise em crise, é o fado do capitalismo.
Quanto à cultura, não sei que diga. Ao contrário de outras profissões, os artistas são bastante generosos e estão habituados a uma vida de trabalho e de privação. O seu desamparo social é histórico. A precariedade é a regra. Enquanto não vejo advogados ou bancos a disponibilizarem gratuitamente os seus serviços, os artistas gostam de partilhar de graça o seu trabalho. Como nos anos cinquenta, por exemplo, em que se tinha uma profissão a sério e se escrevia versos nos tempos livres. Portanto, conto daqui em diante com outro meio século de atraso. A profissionalização por que lutámos já se perdeu há muito: desde que os jornais deixaram de pagar colaborações e as editoras baixaram de tal maneira o preço da tradução que só sobrevive da cultura quem tem pensão de reforma, fortuna pessoal ou família de apoio. Quanto às grandes editoras, não estou preocupada. O seu negócio não são os livros. O seu negócio é o negócio, e negócios haverá sempre.
Nota: estas são opiniões cataclísmicas. Para opiniões sensatas, racionais, frias e ponderadas seguir José Vítor Malheiros, que eu também sigo. E a DGS.
Luísa Costa Gomes. Escritora