Bem sei que vivemos tempos graves, sérios e preocupantes. Talvez não haja muita disponibilidade ou tolerância para uma pitada de humor, em qualquer das suas formas – embora a quantidade de piadas, graças e graçolas (umas melhores, outras piores) em intensa, ou mesmo desbragada, circulação virtual/digital me leve a duvidar. Contudo, atrevo-me (soit disant) a escrever e a publicar o que se segue, não só porque a liberdade de reflexão e de opinião não está suspensa, mas também porque sou muito devoto de dois ensinamentos: rir é, às vezes, o melhor remédio; e o humor é, pode ser, uma forma muito saudável e eficaz de tratar coisas sérias. E o tema é sério, como sérios (mas não necessariamente sempre sisudos) são estes dias, semanas ou meses.
Com data de 3 de março passado, o nosso Tribunal Constitucional (TC) pronunciou-se (com votos de vencido) no sentido da inconstitucionalidade da norma incriminadora do lenocínio, ou seja, a conduta de quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição. E fê-lo, simplificando, por considerar – em homenagem a um princípio fundamental do direito constitucional criminal que tem andado esquecido ou até espezinhado em anos de enorme, e tantas vezes precipitada ou irrefletida, expansão penal – que o que tal crime acautela não justifica a intervenção criminal, uma vez que, e usando uma expressão clássica e feliz a que me apeguei cedo e a que continuo fiel, só deve ser criminalizado aquilo que resiste ao teste da necessidade de proteção (“dignidade e carência de tutela”) através da área do direito que é a mais intrusiva e limitadora de direitos e liberdades. Dito de outro modo, mais bélico, o direito criminal corresponde ao arsenal atómico do direito, pelo que deve ser deixado para o que é mais importante e grave e, ademais, que não pode ser bem tratado por outras áreas do direito, menos ‘letais’; é de ultima ratio, em suma. O Tribunal Constitucional, por maioria dos subscritores do acórdão em causa, considerou agora que não é o caso do lenocínio. E devo dizer que tem o meu acordo.
Mas não é tanto a isso que venho aqui, mas mais a assinalar o timing desta ‘prova de vida’ do nosso TC, que é feliz por um lado, mas infeliz (tempos cruéis) por outro. É feliz porque mostra, à uma, que, afinal, sempre se consegue que o TC aceite recursos de fiscalização concreta de (in)constitucionalidade normativa, não sendo totalmente verdade o que por aí se diz no sentido de ser mais difícil conseguir franquear com um recurso as portas do TC do que fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha; e, à outra, porque mostra que o TC, quando mexe, ainda é capaz de discussões vivas, profundas e – em minha opinião – tributárias de princípios fundamentais, mesmo que contra o que pode ser o caminho mais fácil de não agitar as águas ou de não ir contra possíveis opiniões e sentimentos maioritários (mais a mais, num tempo muito liberal para umas coisas, e muito conservador, quando não hipócrita, para outras).
Mas o timing (tempos cruéis, repito) é, também, infeliz, pois o incentivo libertador e (diga-se, sem pudor, ou mesmo com ousadia) até de impulso à iniciativa privada/económica (podeis chocar-vos, mal não faz o choque numa sociedade aberta e livre, e sem ironia acerada não vamos lá) esbarra com a crise do coronavírus e com o necessário e higiénico isolamento social que a mesma reclama. Ou seja, se esta decisão pode libertar o lenocínio do espartilho da criminalização, fá-lo num tempo deserto de contactos, de relacionamentos, de proximidades (mais a mais fortuitas) e de liberdade ampla. Não foi certamente propositado o timing, mas já estou a ver os mais céticos a ver aqui mais uma evidência de que o TC não serve mesmo para nada, e alguns mais indignados com esta tese constitucional a dizer que os deuses, na sua sabedoria e majestade, sempre escrevem direito por linhas tortas. Quem sabe? E, claro, como diria o outro apanhado a colocar a liga na condessa, honni soit qui mal y pense.
*Rui Patrício, jurista