O pior ainda está para vir. Não é um mote, é um alerta tenebroso. E tem sido constantemente repetido nos Estados Unidos, nos últimos dias, para que entre nos ouvidos dos cidadãos: mesmo que tudo corra de forma perfeita, as mortes provocadas pelo novo coronavírus vão cifrar-se entre as 100 mil e 240 mil no país, avisam os responsáveis pela coordenação da resposta à pandemia da administração norte-americana. E os governadores não aparentam estar nada satisfeitos com o seu Presidente, principalmente o de Nova Iorque, que enfrenta o pior surto da pandemia no país.
Comparando, a gripe influenza matou, em 1918, 675 mil pessoas nos EUA – a população do país era muito menor na altura. O chefe da Casa Branca já reconheceu que a covid-19 não é uma mera gripe e o seu tom já foi mais soturno na terça-feira. “Não é uma gripe”, admitiu. “É cruel”. Mas a asserção de Trump de que o país estava bem preparado e tinha stock suficiente para testar os norte-americanos e fornecer material para tratar os pacientes mais doentes fez com que um coro de governadores desafiassem publicamente o ocupante da Casa Branca.
Andrew Cuomo, governador de Nova Iorque, onde a pandemia está a ter os seus contornos mais negros – tem cerca de metade dos casos confirmados do país -, deu uma imagem na terça-feira: é como “estar no eBay com 50 estados a licitar por um ventilador”. Algo que repetiu esta quarta-feira. “Estou a telefonar a toda a gente que conheço”, disse, referindo-se à sua tentativa de comprar ventiladores, lamentando a dependência destes em relação à China. “Não sei como chegámos a este ponto”, queixou-se, dizendo necessitar de 37 mil ventiladores. Neste estado, onde o número de vítimas mortais não para de subir, tendo já ultrapassado as 1500, estão a ser mobilizados recursos, materiais e humanos, de todos os EUA para o combate à covid-19.
Estão a chegar à região metropolitana, segundo o New York Times, mais de 2 mil enfermeiros e 500 paramédicos e técnicos de emergência, além de 250 ambulâncias, para se juntarem à Guarda Nacional e à Marinha na assistência aos profissionais de saúde. Entretanto, o Central Park, no coração de Manhattan, está a ser convertido em hospital de campanha.
Mas pode ser preciso mais: Cuomo tem repetido nas últimas semanas o apelo ao Governo federal para mais e maior auxílio. Vários governadores o têm feito, como o governador republicano de Maryland, mas Cuomo tem sido o mais audível nesse sentido – o que mereceu uma resposta de Trump, que se mostrou insatisfeito com as queixas frequentes do líder do estado de Nova Iorque: “Para algumas pessoas, não interessa quanto se dá, nunca é suficiente”.
Os casos confirmados em Nova Iorque – 31 dias depois de ter sido detetado o primeiro – têm subido exponencialmente nos últimos dias e esta quarta-feira estiveram a um milímetro dos 84 mil, anunciou Cuomo – morreram de terça para quarta-feira quase 400 pessoas e o estado está prestes a ultrapassar as 2 mil mortes.
A curva de infeções em Nova Iorque ainda não chegou ao seu pico. “Vocês vêm uma curva, eu vejo uma montanha”, disse Cuomo na conferência de imprensa diária de atualização do estado da pandemia, citando também uma projeção de 16 mil mortes no estado, realizada pela Fundação Gates. Na mesma ocasião, Cuomo admitiu que podia mobilizar recursos do resto do estado para auxiliar a cidade de Nova Iorque – que tem mais de metade dos casos da região – e enfatizou a cooperação com os estados vizinhos, como Connecticut e Nova Jérsia.
Na preparação para o pior, foram oferecidos a parte da população prisional de Rikers Island seis dólares por hora – muito mais do que os padrões laborais desta população, mas bem menos que o salário mínimo estatal – para fazerem covas, segundo o Intercept. Esta informação foi confirmada pelo gabinete de Bill de Blasio, presidente da Câmara de Nova Iorque, que, no entanto, disse que a medida não é “específica para a covid”.
A cidade de Nova Iorque é proprietária do cemitério público em Hart Island, que tem sido mantido pela mão-de-obra dos encarcerados. Segundo a mesma publicação, a ilha foi identificada, no ano de 2008, como um potencial local de enterramento de cadáveres numa eventual pandemia, citando um relatório de uma autoridade de saúde local.
Hoje, o desastre económico provocado pela covid-19 fez-se sentir ainda mais na pele dos nova-iorquinos, que já têm a sua vida completamente virada do avesso: foi dia de pagar a renda. “Chegou ao ponto de não poder pagar a renda porque fazê-lo significaria comprometer a minha capacidade de comprar comida ou, basicamente, de sobreviver”, disse ao New York Times Henry True, 24 anos, que paga 600 dólares mensais por um quarto num apartamento partilhado, em Brooklyn.
No fecho desta edição, os números da Casa Branca sobre a covid-19 ainda não tinham sido anunciados. Mas, segundo a Universidade John Hopkins, os EUA já contabilizam mais de 190 mil casos.