Depois de conter a epidemia «fechados», conter a pandemia com alguma retoma da normalidade. O novo desafio foi traçado esta semana por António Costa. Se até aqui os resultados nacionais no combate à pandemia têm sido vistos como um caso de sucesso ao permitir travar a curva da covid-19, segue-se uma fase em que os países estão a navegar ainda mais às escuras do que quando seguiram a estratégia de ficar em casa para conter o vírus e aumenta a complexidade: mesmo com a diminuição de casos esperada nas próximas semanas, quando a porta de casa e da economia começar a ser reaberta podem surgir a qualquer momento novos focos de doença. O sistema de vigilância epidemiológica tem de estar pronto para reagir e o tema das apps de geolocalização, mesmo a título voluntário, continua a dividir opiniões – o Ministério da Saúde não respondeu ao SOL se é ou não uma opção que esteja a ser equacionada.
Depois de uma adaptação à fase crítica da pandemia, os hospitais e centros de saúde terão de adaptar-se de novo para manter a resposta à covid-19 ao mesmo tempo que o objetivo do Governo é começar a retomar nas próximas semanas milhares de cirurgias e consultas adiadas – o plano para o fazer ainda não foi apresentado, mas a ministra da Saúde adiantou esta semana que a estratégia será identificar doentes prioritários e afetar equipas cirúrgicas às listas atrasadas. E esta sexta-feira o secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales anunciou que os hospitais vão ter 5 mil testes rápidos que permitem despistar o vírus em 45 minutos em vez da análise convencional, cujo resultado demora cinco horas. Poderão ser usados, por exemplo, para despistar a infeção num doente chamado para ser operado. O impacto das últimas semanas não foi ainda quantificado pela tutela, mas num março normal os hospitais do SNS fazem um milhão de consultas e mais de 50 mil operações programadas, o que dá uma dimensão do esforço de recuperação que o SNS terá pela frente.
Se o sistema de saúde é o ponto nevrálgico da crise, as mudanças serão transversais. «Temos de ser muito disciplinados e coesos porque o vírus mantém a sua dinâmica. Se não o contrariarmos, vai propagar-se», disse esta sexta-feira Graça Freitas, insistindo na importância de encontrar uma forma equilibrada de retomar a «normalidade possível».
No Parlamento, no dia em que foi votado o terceiro período de estado de emergência, António Costa assumiu a expectativa de que, mantendo-se a atual trajetória, em maio possam reabrir não só as escolas para o 11.º e 12.º anos, mas também creches e pequeno comércio, incluindo restauração e cabeleireiros, com novas regras e medidas de higienização. Lotações reduzidas e marcações prévias são algumas das estratégias e os diferentes setores estão já a mobilizar-se para as soluções, desde logo a produção em massa de máscaras, que a DGS passou esta semana a recomendar em espaços públicos fechados e que já assumiu que irão manter-se daqui para a frente. António Costa admitiu que o regresso ao trabalho presencial poderá ter de ser faseado, com horários alternados nas empresas, mas não foi explicitado como será organizado esse regresso. Já esta sexta-feira, as universidades e centros de investigação receberam instruções diretas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Nestas duas semanas devem até ao final de abril preparar «planos para levantamento progressivo das medidas de contenção atualmente existentes», incluindo para a reativação de atividades com a presença dos alunos em maio. No documento, a que o SOL teve acesso, lê-se que devem ter prioridade atividades letivas que dependam por exemplo do contexto laboratorial, mas que continue a ser privilegiado o teletrabalho, especialmente para os grupos de risco, e reuniões à distância.
Ter menos pessoas a sair de casa ao mesmo tempo é uma das grandes preocupações e António Costa assumiu que as horas de ponta e os transportes serão alguns dos pontos críticos, mas para já não foram apontados remédios para uma situação que já antes era caótica e continuou a ser com o país em estado de emergência, com vários utilizadores da CP e Metro de Lisboa a relatarem a dificuldade em manter distâncias de segurança perante ligações suprimidas. Os transportes são a «maior dificuldade logística», reconheceu o primeiro-ministro. Mas as preocupações são muitas, desde logo para perceber qual será a altura certa para reabrir e se o otimismo, por um lado, e o cansaço do confinamento por outro, não poderão fazer baixar a guarda cedo de mais e trazer más surpresas em abril.
Dados fracos para decisões que se querem fortes
Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, admite que essa é uma das principais preocupações no terreno. O número baixo de novos casos confirmados esta sexta-feira – 181 – leva o médico a reforçar o alerta. «São menos casos do que seria expectável e tem de ser estudado pois pode resultar do atraso de notificações e menor realização de testes. Entrando o fim de semana, arriscamo-nos a ter três ou quatro dias com números baixos que podem dar uma ideia errada à população de que a situação está controlada. Receio que este resultado possa levar a mudanças de comportamento com impacto futuro», diz. E durante a semana foram, de facto, aumentando as pessoas na rua, com o fim de semana a trazer alguma aberta no tempo que pode também convidar a mais saídas.
Numa semana em que se começou a discutir publicamente qual a melhor altura para reabrir o país, o médico defende que a oscilação dos dados nacionais publicados nos boletins da DGS torna ainda mais difícil a análise. Na reunião técnica no Infarmed, um dos valores de referência discutidos foi o chamado R0 da epidemia, que calcula a taxa de propagação do vírus em cada momento. E um dos valores propostos para decidir a reabertura foi um R0 de 0,7, o critério seguido na Noruega e que Graça Freitas disse que em Portugal está a ser estudado, a par de outros, rejeitando que exista um número milagroso. Segundo a diretora-geral da Saúde, o R0 do país ronda atualmente 1,1, com pequenas variações regionais. «Com esta variabilidade nos dados, num dia temos 750 casos e noutro 181, é difícil calcular com solidez um R0 em Portugal. Dados fracos tornam fracas decisões que se querem fortes», alerta Filipe Froes.
Também Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, defende que é necessário serem divulgados dados mais consistentes – o acesso a dados para investigação e análise da situação epidemiológica nacional tem sido uma das críticas feitas pela comunidade médica e científica ao Governo desde o início da epidemia.
Para a fase que se segue, Ricardo Mexia sublinha que a evolução da situação nas próximas duas semanas será decisiva. «Se daqui a 15 dias estivermos numa situação parecida com a atual, dificilmente se poderão levantar restrições», diz, admitindo também que possa existir uma diferenciação geográfica na descompressão das medidas. A epidemia parece atualmente estar mais controlada no Alentejo e ilhas do que na região Centro, onde se regista a maior taxa de letalidade (5,3% dos doentes morreram contra uma média de 3,5% a nível nacional), e na região Norte, epicentro da crise no país, com cerca de 60% dos casos confirmados até ao momento. E onde se poderá justificar que as restrições se mantenham durante mais tempo? «Sabemos que a insularidade tem custos assim como a desertificação do interior e do Alentejo, mas neste caso pode trazer algumas vantagens no controlo da epidemia», explica Ricardo Mexia. Filipe Froes admite também que poderia fazer sentido abrir mais cedo as regiões com menos casos, o que deixaria o Norte – onde este fim de semana Ovar vê para já levantada a cerca sanitária por deixar de ser um concelho de especial preocupação – para mais tarde. Mas o médico defende que é preciso estudar se existem discrepâncias regionais, por exemplo, na realização de testes e um balanço dos testes feitos em lares. Esta semana, a Câmara Municipal do Porto revelou que já foram testados mais de 3000 idosos e funcionários em lares, tendo sido encontrados 29 casos positivos. Não existe ainda um balanço da iniciativa que visava levar 10 mil testes a lares da região Centro e Sul do país. O decreto-lei que renova o estado de emergência até 2 de maio dá já margem para uma reabertura gradual de alguns serviços e comércio mas também que «podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes as restrições simétricas ou assimétricas, designadamente em relação a pessoas e grupos etários ou locais de residência, que, sem cariz discriminatório, sejam adequadas à situação epidemiológica e justificadas pela necessidade de reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia». Haverá um limite à idade para regressar ao trabalho ou deixar o confinamento? Para Ricardo Mexia, é certo que a população com maiores fatores de risco precisará de continuar mais resguardada, mas considera que ser definida uma idade teria de ser uma questão muito bem pensada para ser socialmente aceite.
Não havendo uma receita única para levantar restrições, Ricardo Mexia defende que a capacidade para testar, isolar e rastrear contactos, identificando rapidamente cadeias de transmissão, será um dos grandes desafios, assim como reforçar a capacidade de intervenção das equipas de saúde pública e respostas sociais. «Vamos precisar de capacidade de diagnóstico laboratorial para responder de forma célere e que neste momento não temos, porque as pessoas demoram algum tempo a fazer o teste e a ter os resultados e vamos precisar de equipas de resposta rápida que possam prontamente intervir e isolar os doentes por exemplo lares», propõe o médico. «Isto pode ser decidido por decreto mas não se implementa no terreno por decreto. Quando avançarmos vamos ter de ter um conjunto de respostas prontas para evitar as dificuldades que tivemos no início da epidemia com a linha SNS24 e o acesso a testes.»
4 mil casos até ao final do mês
Se o Governo não tem divulgado publicamente os modelos que está a seguir, entre os especialistas que têm feito a modelação da epidemia no país tem vindo a ser reforçada a ideia de que a epidemia pode estar já numa fase descendente, mesmo admitindo-se que atrasos na realização e notificação de testes causam ruído na análise. Óscar Felgueiras, matemático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, defende ao SOL que Portugal está numa fase de saída do planalto de casos. «Houve recentemente algumas oscilações fortes nos números, provavelmente devido a limitações de ordem logística na altura em que nos aproximávamo-nos do momento em que deveria ter surgido o pico, por volta de 5 de abril. Em vez de pico tivemos um vale, certamente causado por atrasos ou limitações na realização e notificação de testes. Assim, o planalto prolongou-se dando origem a um pico de 1516 casos em que houve um acerto de contas na véspera de fim de semana da Páscoa», diz. «Sabe-se que estes atrasos chegaram a ser de duas semanas e isso faz com que alguns casos que em condições normais deveriam ter sido confirmados, o sejam mais tarde, e deem negativo quando teriam dado positivo antes ou que simplesmente as pessoas desistam», analisa.
Para o investigador, o facto de estarem a ser contabilizados menos casos do que seria expectável pode estar a contribuir para o aumento da taxa de letalidade nas últimas semanas, de 2,3% para 3,5%, sem que signifique um agravamento da situação epidemiológica do país: «Não deverá ser vista com preocupação desde que os casos mais graves tenham sido devidamente acudidos. Tendo em conta a evolução do número de óbitos, nada leva a crer que esse problema tenha existido.»
Esta sexta-feira os dados sugerem que terá havido mais uma vez atrasos nas notificações ou na realização de testes, mas mesmo que o número possa vir a aumentar, a expectativa é que a trajetória se mantenha para já. O modelo traçado pela epidemiologista Gabriela Gomes estima que no início de maio Portugal registará ainda cerca de 60 novos casos por dia e só no final do mês existirá uma situação comparável à que o país tinha no início de março. Para a investigadora será, no entanto, difícil voltar a um cenário de controlo total das cadeias de transmissão, pelo que a reabertura terá de ser sempre muito gradual, com as medidas de distanciamento social a serem vitais para travar a progressão do vírus.
Na reunião desta semana no Infarmed, apurou o SOL, os modelos apresentados apontavam para uma situação mais compatível com o levantamento das restrições a partir da segunda quinzena de maio. «Acho que ninguém tem certezas absolutas quanto ao momento exato», diz Óscar Felgueiras.
Numa altura em que o país passou a barreira dos 19 mil casos, o investigador estima que nas próximas duas semanas venham a ser confirmados cerca de 4 mil casos, com a epidemia a chegar aos 23 mil doentes até ao final do mês, com a diminuição progressiva do número de casos diários: «Havendo uma situação confortável em termos de utilização de recursos hospitalares e número relativamente baixo de novos casos, deveremos ir levantando as medidas restritivas e reabrir a economia. Isto feito com prudência e de forma faseada. Nesta altura podemos ter como referência já alguns dos bons exemplos existentes como são alguns países do leste europeu. O uso de máscara e adoção de normas de higiene serão essenciais. Outras medidas como evitar grandes concentrações de gente terão de ser mantidas por algum tempo. Temos de voltar a uma nova normalidade arranjando um compromisso entre as várias variáveis em jogo.»
E preparar para sair de casa com o novo chip. «O grande desafio agora é aprendermos e absorvermos a nova consciência cívica que temos de ter nas nossas ações. Fizemos como país um grande esforço de confinamento que está a produzir resultados. Temos de interiorizar o nosso padrão de comportamento para quando pudermos sair. Não devemos ter medo, mas respeito pelo nosso inimigo comum. Se nos mantivermos cumpridores, acredito que continuaremos a ser um exemplo.»
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