Na última entrevista que concedeu ao SOL, Nuno Ramos de Almeida perguntava-lhe se era autobiográfica uma das histórias de Patagónia Express: a de um avô que dava refrescos ao neto, para que tivesse vontade de urinar e depois lhe dizer que o fizesse à porta da igreja. E Sepúlveda respondia, entre risos: «Sim, sou neto de um andaluz anarquista e quando era muito pequeno a grande diversão do velho era dar-me de beber Fantas e Coca-Cola até que eu lhe dizia: ‘avô tenho que fazer xixi’. E ele respondia-me, vamos ali a uma igreja. E quando os padres saíam a protestar por eu estar a fazer junto à parede da igreja, muitas vezes, o meu avô, andava à pancada com eles».
Luis Sepúlveda não era apenas um escritor por tantos querido, aquele do qual o seu «amigo, colega e admirador» Santiago Gamboa escrevia na quinta-feira no El País, recordando-o, na hora da morte, que «os leitores não queriam apenas lê-lo, mas tê-lo como convidado para jantar nas suas casas, em cada dia das suas vidas». O «contador maior», com as histórias que a escritora Lídia Jorge descreveu num depoimento à Porto Editora, responsável pelas edições da totalidade da sua obra em Portugal, como «jóias preciosas» coroando a sua «singular arte de contar», que crê nascidas de uma «experiência de vida vivida no fio da navalha».
Vamos então a essa vida doescritor chileno que, no regresso às Astúrias, onde vivia, depois de em fevereiro ter participado no Correntes d’ Escritas, na Póvoa de Varzim, foi diagnosticado com covid-19. Doença à qual, internado no Hospital Universitário Central de Astúrias desde então, acabou por sucumbir na quinta-feira, aos 70 anos.
Nascido em Ovalle, no Chile, a 4 de outubro de 1949, Luis Sepúlveda começou a escrever quando frequentava ainda o Instituto Nacional de Santiago, influenciado, segundo a biografia disponível no site da Porto Editora, por uma professora de História. Filho de uma enfermeira com origens mapuche e de um comunista proprietário de um restaurante, cedo Sepúlveda começou a formar uma consciência política que haveria de o levar a militar no no Exército de Libertação Nacional do Partido Socialista. Antes disso, com apenas 15 anos, ingressou na Juventude Comunista do Chile, da qual acabaria expulso quatro anos depois.
Estudou na Escola de Teatro da Universidade do Chile, da qual viria a estar à frente enquanto diretor, antes de se ter formado em Ciências da Comunicação pela Universidade de Heidelberg. A sua passagem pela Alemanha, aonde rumou em 1982, e pelos 14 anos seguintes, teve como motor a sua paixão pela literatura alemã. Fez-se militante ecologista, trabalhou durante cinco anos como correspondente da Greenpeace.
No seu país, ainda durante a década de 1970, havia sido membro da Unidade Popular. Com a tomada do poder por Augusto Pinochet viu-se forçado a deixar o país e durante anos viveu entre o Brasil, o Uruguai, a Bolívia, o Paraguai, o Peru e o Equador, entre os shuar, numa missão da UNESCO, experiência que viria tornar possível a história de O Velho Que Lia Romances de Amor. A luta política não a travou apenas no seu país: chegou a integrar, a partir de 1979, as fileiras sandinistas da Brigada Internacional Simon Bolívar, no combate à ditadura de Anastácio Somoza, na Nicarágua. Foi depois da vitória sandinista que se fez jornalista.
Mas já aí se havia feito escritor. Com Crónicas de Pedro Nadie, o primeiro, editado em 1970, venceu o Prémio Casa das Américas e uma bolsa de estudo na Universidade Lomonosov, em Moscovo, onde não duraria contudo mais do que cinco meses. Foi expulso por «atentado à moral proletária».
Foi ativista, jornalista, realizador e argumentista, mas foi através dos livros e das histórias que chegou ao mundo que ontem dele se despediu.
Foi na década de 1990 que começou a conquistar o lugar de escritor querido em países como Portugal, mas não só. Momento seminal para o seu sucesso no continente onde passaria os 23 anos que seriam os últimos da sua vida (em Gijón, nas Astúrias, para onde se mudou com a mulher, a poeta Carmen Yáñez, em 1997) foi a tradução de O Velho Que Lia Romances de Amor (1988) para o francês, em 1992.
O velho era Antonio José Bolívar Proaño, um homem que, na tribo amazónica dos shuar, ocupava as noites solitárias que lhe restavam até que se acabasse a vida lendo os romances que lhe levava, duas vezes ao ano, o dentista, Rubicundo Loachamín. «Desde que foi publicado que começou a ser lido de forma frenética».
Foi nesse país que, recordava ainda o amigo Santiago Gamboa, teve início o seu «impressionante êxito». «Quando a editora Anne Marie Métailie, dona das Editions Métailie, decidiu apostar no romance de um chileno desconhecido que havia ganhado em Espanha o prémio Tigre Juan».
Seguiram-se Itália, em 1993, logo depois Portugal, onde começou a ser editado por Manuel Valente, das Edições Asa, e depois o resto da Europa, e mais: aos 70 anos Luis Sepúlveda chegou com os seus livros traduzidos, segundo a Porto Editora, que atualmente publica a sua obra, para mais 60 idiomas e mais de 18 milhões de exemplares vendidos por todo o mundo. O que de bom lhe trouxe essa explosão no continente europeu, faz questão de notar Santiago Gamboa, depressa se dedicou a repartir com colegas e amigos.
Em Gijón, onde passou as últimas décadas, fundou e dirigiu o Salão do Livro Ibero-americano como forma de promover o encontro de escritores, editores e livreiros latino-americanos com os homólogos europeus. Em Portugal, onde está publicada a totalidade da sua obra, foi distinguido em 2016 com o Prémio Eduardo Lourenço. Era presença assídua em cada edição da Feira do Livro de Lisboa. Em 2017, o ano em que concedeu aquela que foi a sua última entrevista ao SOL, tinha publicado O Fim da História. Esta semana, fechou-se a sua. Ficam todas as que deixou.