Salve-se quem puder!

Nos botes salva-vidas, havia machados para cortar as mãos aos que se agarrassem ao bordo.

Os seis meses de recruta na Armada espevitaram em mim o interesse pelos relatos das grandes batalhas navais e dos naufrágios… o Titanic à frente de todos. Foi nessas leituras que descobri uma coisa sórdida: havia barcos salva-vidas equipados com machados, para que os de dentro, esgotada a capacidade do bote, cortassem as mãos que se agarrassem ao bordo.

Para conhecer a natureza humana, nada como observar os comportamentos em caso de tragédia, seja ela terramoto, incêndio ou naufrágio. Aí, é o ‘salve-se quem puder’.

As críticas ao primeiro-ministro, por ter autorizado a atracagem de um paquete que andava há um mês no oceano a pedir ajuda, recordaram-me os machados, que gente embrutecida pelo medo usava, sem dó nem piedade, mostrando com que facilidade o egoísmo toma o lugar da compaixão.

Outros pedidos de ajuda, lançados por navios em situação semelhante, foram igualmente ignorados por dirigentes de países ditos civilizados. Porquê esta desumanidade? É certo que o desembarque de doentes acarreta riscos de contágio, mas as autoridades sanitárias sabem como lidar com isso, como se provou, em Lisboa, com o resgate e repatriamento dos passageiros do MSC Fantasia.

Sempre estive convencido de que o repúdio dos doentes tinha terminado com as leprosarias, quando os contaminados eram abandonados no hospital da Tocha, longe da vista… e do coração.

Não foi a primeira vez, nem será a última, que testemunhamos a recusa de auxílio, seja a doentes a bordo de navios, seja a refugiados, barrados nas fronteiras e atirados para campos de concentração improvisados, onde ficam expostos às intempéries, à fome e às doenças. Choca-me que não haja, entre os que têm poder, quem se revolte contra estas condenações à morte, em especial, dos que são intrépidos defensores da exclusão da pena de morte nas suas Constituições. Estranho mundo!

Ponho-me a recordar a divisa da Revolução Francesa e dou-me conta de que a ‘fraternité’ se perdeu pelo caminho. Diga-se a verdade… a ‘liberté’ e a ‘égalité’ também já conheceram melhores dias.

Num mundo que se tornou competitivo em grau superlativo, a lógica do ‘deve e haver’ derrota todos os dias os ideais de paz e amizade cantados por Joan Baez e Bob Dylan nos gloriosos anos sessenta do século passado.

Em plena civilização tecnológica, é ver os campeões das liberdades, direitos e garantias a assobiarem para o lado, numa atitude que faz lembrar o que escreveu Czeslaw Milosz, Nobel da Literatura em 1980: «Estes homens de negócios com olhares nulos e sorrisos atrofiados… foi a estes vermes que veio desembocar uma tão delicada e complexa civilização?».

O poeta polaco referia-se à parte negra da economia, onde abundam os seres de ‘olhares nulos’, para quem os fins justificam os meios. Que diria ele dos políticos de agora, novos seres de ‘sorrisos atrofiados’, capazes de abandonar pessoas em risco, de alimentar o mercado negro, e de comprar material hospitalar desviado do destino…