No rosto de Irrfan Khan tinham margem de balanço as sombras disso que costuma perder-se na tradução. Uma das lendas do cinema indiano, com os papéis em filmes como Quem quer ser milionário? (2008) e A Vida de Pi (2012), tornou-se um entre um punhado de actores que, depois de conquistarem Bollywood, alcançaram projecção mundial. Khan morreu na quarta-feira, aos 53 anos, de uma infecção no cólon, depois de ter sido internado uma semana antes num hospital em Bombaim. Em 2018, tinha-lhe sido diagnosticado um cancro raro (tumor neuroendócrino). Num comunicado ao Times of India, a família do actor disse que ele morreu rodeado dos que lhe eram mais próximos. “Irrfan era uma alma vigorosa, alguém que lutou até ao fim e que sempre inspirou todos aqueles que dele se tornaram próximos.”
Em 2018, quando tornou publico o seu diagnóstico de cancro, citou a romancista Margaret Mitchell, autora de E Tudo o Vento Levou: “A vida não tem obrigação nenhuma de corresponder às nossas expectativas.” O actor tranquilizou os fãs, lembrando que “o inesperado nos faz crescer, e os últimos dias têm-se revelado uma aprendizagem a esse respeito”. Khan mostrou-se optimista, e disse que esperava ter ainda outras histórias para contar. Em 2019, o cancro parecia ter entrado em remissão, e o actor estreou em Março, na Índia, o seu último filme, Angrezi Medium, quando a pandemia do novo coronavírus obrigou ao encerramento das salas de cinema. Khan tinha ainda planos para protagonizar outros dois filmes.
Peter Bradshaw, crítico de cinema no The Guardian, explica o peculiar carisma de Irrfan Khan referindo uma calma e sedutora persuasão, a de um homem que, sem causar alarme, se aproxima furtivamente, até que o seu olhar sensível fique à vontade, demorando-se, até firmar um pacto com quem o ouve. “Quase lhe poderíamos chamar o Clooney de Bombaim”, diz Bradshaw, reconhecendo que se trata de um elogio condescendente, mas que se esforça por explicar em termos hollywoodescos o encanto deste colosso do cinema indiano. À medida que os anos passavam por ele, entrando na meia idade, o amadurecimento da sua beleza discreta deu-lhe a “versatilidade” que o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, exaltou numa homenagem a Khan, publicada nas redes sociais. Depois de quase ter sido levado a desistir da carreira de actor, frustrado com os papéis que conseguia como actor de telenovelas, em 2001, Khan viu a sua vida mudar com o desempenho quase silencioso no filme “O Guerreiro”, uma adaptação de um conto tradicional japonês pelo realizador britânico Asif Kapadia. Desde aí, começaram a oferecer-lhe papéis de protagonista em dramas e em fitas românticas, ou de vilões nas exuberantes produções de Bollywood. Mas neste ponto Khan obriga-nos a fazer uma correcção, tendo-se batido para que este termo que raia, uma vez mais, o condescendente, fosse abandonado. “Esta indústria tem a sua própria técnica, a sua forma de fazer filmes e que nada tem que ver com a de Hollywood”, disse numa entrevista ao The Guardian, em 2013. “E se é assim, por que razão é que sofreram esta perda de identidade chamando-lhe Bollywood?”
Irrfan Khan nasceu com o nome de baptismo Sahabzade Irfan Ali Khan, em Janeiro de 1967, em Tonk, um povoado junto à capital do estado de Rajastão, Jaipur. Um de quatro irmãos, o seu pai era caçador e possuía uma loja de pneus, e embora fossem de classe média, a mãe, Saeeda Begum, pertencia à família real Tonk Hakim. Foi para se livrar do embaraço que lhe causavam essas raízes aristocráticas que abandonou o primeiro nome, acrescentando um “r” a Irfan, por razões puramente fonéticas. Da infância não guardava outra coisa que não boas memórias, entre andar amatilhado com os miúdos da vizinhança a brincar nos telhados de Tonk, nas competições de papagaios de papel, a jogar cricket ou a acompanhar o pai nas caçadas. Quando tinha 18 anos, o pai morreu. A mãe esperava que ele se ocupasse da loja de pneus em Jaipur, mas Irrfan já tinha outros planos. Depois de ter ambicionado ser jogador profissional de cricket, ainda na adolescência começou a virar-se para as artes dramáticas. “Os meus pais não aprovavam, eles preferiam que fizesse algo com mais prestígio, como ser académico ou médico, essas ocupações que a classe média considera ‘honrosas’. Eu disse-lhes que iria ser professor de artes dramáticas, mas já sabia que não era isso o que queria.” Prestou provas, e conseguiu entrar na Escola Nacional de Teatro em Nova Deli, em 1984. “Se não tivesse conseguido tinha dado em doido. A minha vida estava orientada num sentido em que eu já só lhe via o fim, de tão aborrecida, tão repetitiva que era… Eu queria fazer alguma coisa que me desse uma ligação com o mundo.” Foi no curso que conheceu a guionista Sutapa Sikdar, com quem viria a casar-se em 1995, tendo com ela dois filhos.
A sua estreia no grande ecrã deu-se em 1988, no filme Salaam Bombay!, de Mira Nair. Apesar de este drama sobre as crianças sem-abrigo ter sido um êxito internacional, foi só no início deste século, com o já referido papel em “O Guerreiro” que Khan conseguiu provar que tinha o carisma para protagonizar um filme e garantir o seu apelo junto das audiências. Depois vieram os papéis em grandes produções indianas como Haasil e Maqbool, ambos de 2003, e este último uma adaptação moderna de Macbeth. E se o salto para Hollywood o levou a conquistar papéis secundários em blockbuster como O Fantástico Homem-Aranha (2012), Mundo Jurássico e Inferno (2016), talvez o mais memorável dos seus papéis será o que tem em A Lancheira (2013), uma irónica comédia romântica na qual Khan interpreta um contabilista viúvo que recebe, por engano, um bilhete de amor destinado a outro homem.