Convém começar por lembrar que os livros nem sempre tiveram a atual reputação.
Pitágoras não escreveu. Platão foi um autor oral. Sócrates não escreveu nem ditou.
E hoje ainda, ao entrar nas livrarias, se perguntará: que é um livro? E tudo o que se expõe são livros? E não poderemos equacionar a possibilidade do fim do livro? Porque não?
Eu diria, pois, que este tempo pestífero será também um momento de clarificação.
Teremos de lembrar a fórmula de Lacan segundo a qual «o real é impossível».
A merda editorial ou a parasitária rede intelectual, por exemplo, irão diminuir.
Não vão acabar, porém. As coisas não são claras.
Mas quem, depois disto, pegará num livro de autoajuda, ou numa ficção destes romancistas de ontem? Ou nos poetas colossais do bairro? Já era.
Embora tivéssemos já isolamento, a experiência geral e espetacular de confinamento físico é, também, um exílio dos livros.
E não poderemos esquecer que os belos livros estão escritos numa espécie de língua estrangeira.
Não havendo mundo, não havendo a possibilidade de expatriação, não há leitura para além do banal adaptativo.
Depois de 2020, não voltaremos placidamente ao livro, pois isso seria, imaginariamente, regressar a uma forma outra de confinamento.
Estaremos ávidos da experiência do sensível. E de uma nova ética.
Mas o erotismo do livro não será prioritário.
O sociólogo italiano Vania Baldi, ao pensar este tempo, escreve: «Esperar, augurar, auspiciar, são todos verbos da passividade, remontam à fábula judaico-cristã do optimismo temporal que permeia a cultura ocidental, a ciência, a psicanálise, o marxismo; todos encaram o passado como a ignorância (o trauma, a injustiça), o presente como remédio que emenda através da investigação (a terapia, a revolução) e o futuro que redime e salvará».
Abreviando: o futuro pertence ao contingente.
A Educação Revolucionária Digital do Proletariado (ERDP) enterrará bem alto a galáxia Gutenberg.
A VS. irá continuar em frente editando para o lado.
Os nossos livros, por não terem a validade dos iogurtes, podem esperar por serem descobertos um pouco mais tarde.
Ficar finalmente tudo na mesma, isso sim, seria a catástrofe.
Vasco Santos, Editor da VS. Editora