Olof Palme orgulhava-se de poder passear nas cinzentas mas pacíficas ruas de Estocolmo sem precisar de se rodear de seguranças; tinha a teimosia de viver como um homem comum. O dia 28 de fevereiro de 1986 foi um desses dias em que decidiu não trazer consigo os seus guarda-costas, passeando com sua esposa, Lisbet, depois de uma ida ao cinema. Por volta das 23h00, após a sessão, Lisbeth e Palme caminhavam pela movimentada rua de Estocolmo Sveavage.
Sem guarda-costas a rodeá-lo, um homem alto vestido com um casaco preto pôs a mão no ombro do primeiro-ministro e, com os outros cinco dedos a circundar uma pistola, premiu o gatilho e disparou por duas vezes contra o adorado político sueco.
Palme caiu no chão banhado em sangue e poucas horas depois faleceu. Os contornos do seu homicídio permanecem um mistério e um trauma na sociedade sueca até hoje. E transformaram-se numa cega obsessão de muitos jornalistas suecos e outros, abrindo portas a muitas teorias, possibilidades, hipóteses.
O Ministério Público sueco disse há um par de dias, sem divulgar mais informações, que estava perto de resolver o tão longo mistério – não é a primeira vez que o faz – e prometeu que até meados de 2020 se poderá finalmente resolver um caso que ganhou contornos saídos de um policial de Agatha Christie ou, melhor, de um dos livros da trilogia de Nova Iorque de Paul Auster. Uma certeza sempre se teve: Palme e os seus ruidosos apelos contra a desigualdade, imperialismo e a guerra incomodavam, dentro e fora do país escandinavo. Hoje, a sua memória permanece. E continua a ser uma inspiração para muitos.
Primeiro, o caso
As reviravoltas à volta do homicídio de Palme são quase inenarráveis. A chuva de teorias, umas com mais fundo e outras que não passam de meras conspirações, davam para encher o rio Nilo e acabar com a seca no Saara – jornalistas, procuradores, detetives (amadores também) passaram obstinados anos a tentar resolvê-lo, inclusive Stieg Larsson, o escritor famoso pela sua trilogia Millennium e cuja investigação deu origem a um livro.
Nas quase três décadas e meia desde a morte de Palme foram ouvidas mais de 10 mil pessoas. Pelo menos quatro investigadores lideraram o caso e os ficheiros deste ocupam mais de 250 metros de espaço nas estantes na sede da Polícia Nacional Sueca, tornando-se o maior arquivo de investigação em decurso de um homicídio no mundo, diz o Guardian.
O assassinato de Palme e o seu trauma consequente está tão presente no imaginário da sociedade sueca que, em 2010, o país removeu o limite temporal às investigações de homicídio.
A investigação das autoridades começou mal logo desde o início. Sveavage, como seria de esperar numa das mais icónicas ruas da capital sueca, estava cheia de gente aquando o crime. Apesar de mais de 20 pessoas terem testemunhado o assassinato, nenhum dos testemunhos serviu para retirar conclusões.
A incredulidade da sociedade sueca com a morte do primeiro-ministro que liderava o país há mais de 16 anos sobrepôs-se ao discurso. «Não acredito, na Suécia isto não acontece», foram os relatos mais comuns dos suecos aos repórteres – o que não ajudou. A polícia também não teve uma abordagem irrepreensível.
Não resguardou o perímetro necessário em volta do seu cadáver; e assim que o corpo foi retirado, muitos suecos foram prestar homenagem ao seu falecido líder na área poucas horas depois, ultrapassando o cordão definido pela polícia, estragando quaisquer evidências que se podiam recolher na área.
A polícia não ativou os protocolos de busca definidos para apanhar o homicida e deixou ir embora algumas testemunhas chave sem as ouvir, além de ter falhado ou ignorado outros protocolos, refere ainda o jornal britânico.
O primeiro homem escolhido para conduzir o caso, Hans Holmér, nunca tinha liderado uma investigação de homicídio e foi compulsivamente atrás das pistas erradas. Tentou criar a imagem do suspeito, divulgou-a ao público e a descrição do alegado autor – que, na altura, ganhou o epíteto «fantasma» – correu a comunicação social. No fim acabou com oito mil suspeitos. Mas a mais insólita fixação de Holmér foi a suspeição do envolvimento do movimento Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).
O primeiro-ministro sueco tinha acabado de listar o PKK como um movimento terrorista, mas nunca houve qualquer prova que indicasse que o movimento fosse o culpado. Holmér acabou por cair em desgraça entre o público sueco (no início, era visto como um herói) devido a essa obstinação e foi retirado do caso. No entanto, continuou a investigação como cidadão privado. Durante as suas buscas caseiras, cometeu ilegalidades e nunca chegou a nenhuma conclusão plausível nem reuniu provas credíveis. Nunca se descobriu a arma do crime, e só muito depois se percebeu que tinham escapado factos elementares: havia pessoas com walkie talkies a rondar a área por onde Palme passeava.
Neste périplo, chegou-se a prender um homem: Christer Petersson. Petersson correspondia às descrições do suspeito e Lisbeth identificou-o como o autor do crime e, em julho de 1989, foi sentenciado a um encarceramento perpétuo. Mas foi rapidamente libertado pela falta de provas, depois de os seus advogados terem contestado a decisão. O envolvimento deste homem, entretanto já falecido, no homicídio – assim como os seus motivos (ou sob as ordens de quem o terá cometido) – permanecem uma incógnita.
Desde então, e dentro deste vazio de provas concretas, as especulações foram muitas. E as teorias conspiratórias reinaram durante muito tempo. Falou-se de que teria sido a própria companheira, Lisbet, que havia arquitetado a morte do seu marido devido às suas infidelidades e mesmo que Palme teria planeado o seu suicídio. Com mais substância, suspeitou-se (e suspeita-se) de que a incompetência inicial da polícia não fora um acidente; mas antes um ato planeado por alguma fação de extrema-direita do país, principalmente do seu ramo nos serviços secretos; ou ainda de que Palme foi alvo de conspirações geopolíticas.
A hipótese mais sólida levantada ao longo dos anos foi a do envolvimento do Governo de apartheid da África do Sul. Olof Palme foi um firme apoiante do Congresso Nacional Africano (CNA) de Nelson Mandela, encarcerado na altura, enquanto os Estados Unidos e outras potências ocidentais qualificavam-no como um movimento terrorista: no início dos anos 1970 era mesmo o único país europeu a prestar o seu apoio ao movimento anti apartheid.
No auge da Guerra Fria, a Suécia fazia parte do Movimento dos Não Alinhados – nem Washington nem Moscovo – e os escandinavos eram os maiores financiadores da CNA: a primeira visita de Mandela depois de libertado foi a Visby, na Gotlândia, a maior ilha sueca, em 1990.
Depois, o homem
Reza a história que quando Otelo Saraiva de Carvalho foi a Estocolmo, a convite oficial de Palme, o chefe do Governo sueco perguntou-lhe qual era o objetivo da Revolução. E Otelo respondeu-lhe algo do género: «Acabar com os ricos». Palme terá ripostado: «Interessante, estamos há 20 anos a tentar acabar com os pobres e não conseguimos». Se para não haver pobres não pode haver ricos, o leitor terá as suas conclusões.
A resposta de Palme é a imagem perfeita do pensamento de uma social democracia da altura, com raízes marxistas, mas sem o ímpeto revolucionário e de insurreição: diferenciava-se das várias fações marxistas-leninistas, maoístas e trotskistas da época com as quais Otelo mais facilmente se identificava. O rumo ao socialismo, para Palme e outros, era evolucionista, gradual, e de transição.
«Ou retornamos a Estaline e Lenine, ou tomamos o caminho que se junta à tradição da social-democracia», disse o primeiro-ministro sueco em 1976. E, na verdade, foi a visão de Palme que ficou plasmada no preâmbulo da Constituição Portuguesa: a «de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista».
Nunca foi uma posição fácil de navegar. Numa entrevista coletiva, a atriz norte-americana Shirley Maclaine assumiu a sua admiração por Palme, com aparente genuinidade e, assumindo que a democracia não era compatível com o capitalismo, pôs-lhe uma questão para a qual nunca alguém encontrou uma resposta: como chegar ao socialismo se as pessoas votam contra os seus «próprios interesses? Como se contorna isso com um tempo limitado no Planeta?» O primeiro-ministro sueco respondeu: «Vejo o socialismo como um processo gradual, educativo quase. Onde as pessoas tomam cada vez mais responsabilidades do que temos visto até agora».
É na Suécia que essa social-democracia chegou mais longe, com um misto de impostos altos, um Estado Social forte e um movimento laboral com imenso poder: os sindicatos suecos chegaram até a propor, em 1976, um fundo de assalariados que gradualmente teria socializado as empresas privadas.
Essa social-democracia foi remetida para os bancos de trás nos últimos trinta anos, timidamente renascida em figuras como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders: quando o último fala do modelo nórdico como o ideal, fala da Suécia de que Palme era o rosto. E que, por isso, era visto como um ‘traidor’ pelas classes mais abastadas do país nórdico, dado tendo vindo de uma família aristocrata luterana.
Foi no país do senador socialista, onde o capitalismo se formou na sua forma mais pura, como argumenta o historiador Perry Anderson, sem os constrangimentos feudais, onde Palme ganhou uma bolsa para estudar numa Universidade Kenyon, no Ohio, em 1947. E foi aqui que o futuro primeiro-ministro sueco deu os primeiros passos em direção ao socialismo: apercebeu-se do tamanho da pobreza e da extensão do racismo naquele que era de longe o país mais rico do globo. Apesar disso, Palme adorava os Estados Unidos, a sua confiança pós-guerra e o vibrante movimento sindical – foi membro de uma sociedade socialista e estudou sob a asa de professores progressistas.
Mas o interesse de Palme sobre o ato transformador que pôs um ponto final na ditadura portuguesa era provavelmente genuíno. Na diplomacia, dentro do Movimento dos Países Não-Alinhados, Palme destacava-se pela sua paixão e dedicação pacifista. Foi contra a guerra do Vietname desde que esta se iniciou com os franceses e a sua oposição era vocal, o que enfurecia Washington – Richard Nixon, Presidente dos Estados Unidos na década de 1970, chamou-lhe o «idiota sueco». E a neutralidade sueca durante a Guerra Fria irritava ainda mais os norte-americanos.
Ainda sem chegar a estar na chefia do Governo, Palme era ministro sem pasta. Em 1965, absteve-se de criticar abertamente os Estados Unidos em relação à guerra na Indochina e disse simplesmente que era «uma ilusão acreditar que as exigências de justiça social podiam ser derrubadas pela força militar». Já em 1968 manifestou-se abertamente numa marcha à luz de tochas com o embaixador de Vietname do Norte para Moscovo.
Até Henry Kissinger, secretário de Estado que comandou os EUA durante parte da guerra do Vietname, reconhecia o brio de Palme. «Era engraçado conversar com ele, concordasse-se com ele ou não. Muitos líderes políticos são muito aborrecidos, excetuando o cargo que exercem. Se não fossem primeiros-ministros ou ministros dos Negócios Estrangeiros, não estaria lá muito interessado em falar com eles. Isso não era Olof Palme», disse uma vez.
Embora o termo ambiguidade construtiva – na diplomacia – seja creditado a Kissinger, o antigo secretário de Estado não deixava de se irritar com a posição neutral, mas de anti-guerra, da Suécia: «Uma das coisas que me chateava sobre a posição sueca é que era muito fácil ser moralista a uma grande distância».
Talvez Kissinger estivesse enganado em relação à distância. Para o primeiro-ministro, não bastava dedicar uma percentagem do PIB a países em desenvolvimento e advogar o «pleno emprego e justiça social tanto em países industriais como em desenvolvimento»: tinha que se ter uma posição de princípio contra o colonialismo, o que o levou a confrontar o Governo apartheid da África do Sul.
Com um mundo partido ao meio devido à Guerra Fria, a sua posição de terceira linha era interpretada de várias formas, dentro e fora da Suécia: tanto podia ser perigosamente ingénua, ou simplesmente uma farsa – muitos acusavam-no de ser um agente soviético ou de agir a favor dos seus interesses. No início da década de 1980, o mundo estava nuclearmente armado até aos dentes. Palme criou uma comissão para o desarmamento, que acabou com o seu nome e com proposta de um corredor de 300 quilómetros livre de armas nucleares.
Johan Galtung era seu amigo e trabalhou com ele na diplomacia sueca. Defendiam uma diplomacia que não fosse centrada nos interesses do próprio Estado, como é tradição, mas uma vista de cima, a olhar para o mundo e as suas heterogeneidades. «Olof tinha esse helicóptero», afiançou há uns anos, numa palestra.
Salvador Allende, Presidente chileno vítima de um golpe de Estado e assassinado pelas suas Forças Armadas, era um homem semelhante a Palme mas do outro lado do Planeta e com um país diferente ao da Suécia, com características e contextos distintos. O seu homicídio espoletou um debate.
Ralph Miliband, académico britânico de origem belga, na altura, escreveu que «o que aconteceu no Chile no dia 11 de setembro de 1973, não revelou nada de novo sobre como os homens de poder e privilégio procuram proteger a sua ordem social: a História dos últimos 150 anos está cheia com tais episódios». O romancista colombiano Gabriel García Márquez escreveu também um ensaio para a New Statesman – que a própria a revista descreve como uma «peça clássica» sua – sobre o que se passara no país sul-americano com o título: «Porque é que Allende tinha que morrer».
O sentimento foi o mesmo no dia 28 de fevereiro de 1986 para todo os suecos, de vários quadrantes políticos: um ataque à sua forma de organizar sua sociedade. «É algo que não consigo acreditar que possa ter acontecido na Suécia. É uma tragédia não só para a família de Olof Palme, mas também para o ideal democrático que todos os suecos apoiam», sublinhou na altura Ulf Adelsohn do Partido Moderado, líder da oposição, citado pela United Press International.
O aparato do crime, a personalidade e as crenças de Palme e a falta de respostas resultaram na intricada teia que se viu nas últimas décadas. Agora, as autoridades suecas prometem um desfecho – resta saber se não será, afinal, apenas mais um capítulo de uma história que já merecia um ponto final.