TVI. Conselho de redação dá razão a diretor e põe em causa isenção e rigor de Ana Leal e da equipa

Na deliberação a que o SOL teve acesso é possível ler que Sérgio Figueiredo “agiu em conformidade”, ainda que se reconheça que a forma como transmitiu as mensagens relativamente a trabalhos da equipa de Ana Leal foi “potenciadora de conflitos e mal-entendidos”

O conselho de redação da TVI considera que o diretor de informação não censurou qualquer investigação da equipa liderada pela jornalista Ana Leal. Na deliberação enviada esta noite para a redação da estação de Queluz de Baixo e a que o SOL teve acesso é possível ler mesmo que Sérgio Figueiredo “agiu em conformidade com as suas responsabilidades e competências editoriais, não tendo sido encontrada qualquer prova concreta de que tenha existido censura”. Concordam, por isso, os membros do conselho de redação com as orientações dadas pelo diretor de informação, ainda que reconheçam que a forma como foi transmitida a mensagem – neste caso, a expressão “não é tempo de colocar o dedo em riste apontado a ninguém” – não foi a melhor.

“Todas as decisões tomadas relativamente aos casos apresentados são sustentáveis em função de critérios editoriais, mesmo que discordemos de alguns deles”, frisam ainda os membros do conselho de redação.

Recorde-se que, como o i avançou esta semana, com base em documentação a que teve acesso, a equipa de jornalistas coordenada por Ana Leal acusa a direção de informação da TVI de censurar peças jornalísticas incómodas para o poder político e para as autoridades de saúde. O programa foi suspenso no dia 10 de março e a equipa, constituída pela jornalista e outros três repórteres, foi dissolvida 16 dias depois.

Ao conselho de redação da TVI foram detalhadas por estes jornalistas diversas investigações que a direção de informação da estação de Queluz de Baixo terá travado e conversas mantidas com o diretor de informação. A maioria das reportagens que não chegaram a ser emitidas eram relativas à covid-19, mas há a descrição de uma investigação que envolvia o atual Governo angolano que nunca viu a luz do dia.

Na deliberação agora conhecida, porém, o conselho de redação afirma que o diretor de informação “reconheceu na reunião do conselho de redação de 13 de abril que disse à jornalista Ana Leal que ‘não havia assuntos proibidos, mas [que lhe pediu] para ter cuidado com o tom, porque as pessoas andam assustadas’ com a situação decorrente da pandemia”. “[Sérgio Figueiredo] acrescentou ainda ‘que não era tempo de colocar o dedo em riste apontado a ninguém”, refere ainda a deliberação, assegurando que o diretor deixou a garantia nessa conversa que “depois de tudo isto passar”, poderiam voltar a fazê-lo. 

É preciso apurar se aboragem de Ana Leal cumpre os 'cânones jornalísticos' exigidos

“Os membros eleitos do conselho de redação entendem que esta frase constituía uma orientação geral de caráter editorial e não uma ordem para que este ou aquele assunto não fosse abordado. Remete para o tom e não para o conteúdo. Contudo, parece-nos que a linguagem adotada foi incorreta e potenciadora de conflitos e mal-entendidos”, dizem, deixando claro que discordam “do princípio que está patente nas palavras do DI sobre tom do jornalismo de investigação da TVI e os dedos que se apontam ou não consoante o momento que se vive”: “Os critérios editoriais e os padrões de exigência não podem ser imutáveis, mas devem ser constantes na aplicação”.

Os membros do conselho de redação pronunciam-se ainda sobre uma reportagem do jornalista André Ramos, que será um trabalho sobre alegadas irregularidades no combate à covid a que o diretor mandou retirar conteúdo político, dizendo que esta reportagem “tem exatamente as mesmas virtudes e defeitos de grande parte do trabalho produzido habitualmente no programa ‘Ana Leal’”: “A própria jornalista já teve uma reportagem emitida recentemente no ‘Jornal das 8’ que corresponde exatamente ao seu estilo e forma habituais, que levaram o diretor de informação a pedir-lhe contenção”. 

E o conselho de redação concorda com esse entendimento de Sérgio Figueiredo. Dizem que a abordagem editorial de Ana Leal e da sua equipa “deve ser repensada e objeto de maior escrutínio dos pares para apurar se de facto cumprem os cânones jornalísticos exigidos por um órgão de comunicação social que tem plasmado no seu estatuto editorial o rigor e a isenção, como é o caso da TVI”.

Como justificou a equipa de Ana Leal a alegada censura

Na documentação a que o i teve acesso, é possível verificar que Ana Leal juntou aos esclarecimentos enviados ao conselho de redação uma troca de mensagens com Sérgio Figueiredo no grupo de Whatsapp da equipa. “A Ckaudia [referência à jornalista Cláudia Rosenbusch] está a preparar uma reportagem que será exibida amanhã porque ainda está a ser filmada”, escreveu Ana Leal a 17 de março, tendo recebido 20 minutos depois uma resposta de Figueiredo, com a posição deste. E não era só em relação ao trabalho referido. Era a descrição de uma postura que achava que deveria nortear os jornalistas em tempo de pandemia.

“Ana quem decide se é exibida amanhã ou não será a Direção de Informação. Aproveito para dizer a todos o que hoje de manhã já escrevi a Ana. Jornalismo é informar, mas é sobretudo ter a noção do papel que desempenha na sociedade. Por isso também é filtrar, ter a noção do tempo e do modo como o nosso trabalho impacts na vida dos outros. enquanto os incêndios nao se apagam, não é hora de questionar os bombeiros”, escreveu Sérgio Figueiredo, acrescentando: “Não ignoramos as falhas, mas estar a insistir nelas, estar sobretudo preocupado em denunciar o que não funciona, assusta as pessoas e afasta-as da antena, provoca rejeição. As televisões têm agora a preocupação de informar, de esclarecer, de ser pedagógicos, de perceber que as pessoas precisam sobretudo tranquilizar-se e confiar. Não basta termos a nossa verdade, as nossas certezas, se isso fragiliza ainda mais uma sociedade já frágil e desorientada perante o desconhecido”.

A terminar, dizia que as investigações teriam o seu espaço no pós pandemia: “Quando ela [a pandemia] acabar, quando ela for vencida, então voltamos a questionar, a denunciar, a por em causa. Como sempre temos feito, como esta equipa tem feito, com o aval e o comprometimento pessoal deste diretor que vos admira e da o corpo as balas para que nenhuma pressão nenhum interesse vos trave”.

Mas aquilo que na mensagem parecia um ‘até já’ acabaria por se transformar na concretização do fim desta equipa, antecipado, aliás, em fevereiro numa entrevista que Ana Leal dera ao semanário SOL – segundo o relato dos jornalistas, a 26 de março dois elementos da equipa foram chamados pelo diretor, sendo informados de que a equipa seria dissolvida e teriam de voltar à redação. “A ideia foi transmitida como definitiva” e não como transitória, afirmam.
 
“O jornalismo não está de quarentena”

Ao conselho de redação, além dos esclarecimentos anteriormente enviados para o Sindicato dos Jornalistas, os repórteres desta equipa mostraram-se estupefactos com a posição adotada por Sérgio Figueiredo em tempos particularmente difíceis como os que vivemos. Tempos que precisam de escrutínio, sublinham. 

“A equipa de jornalistas que compunha o ‘Programa Ana Leal’ entende que o jornalismo em tempos de pandemia tem, efetivamente, um papel crucial em termos pedagógicos, mas não pode, de forma alguma, limitar-se a isso. O Jornalismo não está de quarentena. Vale a pena exemplificar com as situações com que fomos confrontados. Ao longo destas semanas, fomos recebendo centenas de e-mails a denunciarem casos de incumprimento das normas de higiene e segurança anti-covid-19, incluindo nos locais de trabalho”, afirmam, questionando: “De que serve a estas pessoas aprenderem pelos media quais as medidas de segurança e higiene a observar, se depois, na altura de denunciarem os casos de incumprimento, lhes virarmos as costas com o argumento de que não é hora de questionar?”
“É com esse sentimento de liberdade que o grupo de jornalistas que compunha o ‘Programa Ana Leal’ considera absolutamente inaceitável que o diretor de informação nos diga como já disse para ficarmos quietos. Não. Não podemos. É o próprio Estatuto dos Jornalistas que nos veda tal comportamento”.

Quanto aos esclarecimentos enviados ao conselho de deontologia do sindicato, esses não continham a troca de mensagens com Sérgio Figueiredo no Whatsapp, mas já faziam referência à posição do diretor de informação perante diversos casos investigados: “A ordem por parte do Diretor de Informação era clara: Não é a hora de apontar o dedo.”

Solidariedade para com o diretor e mais acusações

Esta semana, depois de o i ter noticiado a guerra dentro da redação da TVI, os editores e as chefias fizeram um abaixo assinado, mostrando a sua solidariedade para com o diretor. E quase de seguida chegou uma nova troca de mensagens entre a equipa de Ana Leal e o diretor de informação ao conselho de redação, enviada pelo jornalista André Ramos, com o objetivo de provar que fora travado por Sérgio Figueiredo.

“Sérgio, depois da nossa conversa, de muito refletir e de ter revisto a peça mais do que uma vez, não consigo encontrar forma de cortar. Ontem fiz as alterações que me pediste, no entanto, não consigo retirar partes relativas à ação do governo. Estou a ser confrontado pela primeira vez na vida com uma decisão destas e, como te disse, tenho a humildade de ouvir, refletir e assimilar todas as formas de pensar sobre jornalismo e sobre os tempos que vivemos. Longe de mim querer transformar isto num debate ou numa lição sobre jornalismo, estou cá para aprender e certamente que estes dias foram, são e serão ainda mais uma lição para mim. Estou entre a espada e a parede”, escreveu por email o jornalista na tarde de 26 de março, acrescentando: “Foram feitas declarações inequívocas, em on, pelo governo, que toda a gente estava a ser testada. Não é verdade. Retirar essa parte da reportagem não me deixa confortável. Os telefonemas por si mostram o que está a acontecer – e, sendo contrário ao que diz o governo, deve ser exposto”. 

A terminar, o jornalista diz que espera que a conversa fique entre os dois e conclui que “por imperativo de consciência não [consegue] mudar mais a reportagem”.

A resposta que terá recebido do diretor – esse email foi também enviado ao conselho de redação esta semana – foi muito curta: “Então não há reportagem. Vês como é fácil. Fica bem com a tua consciência, tal como eu fico com a minha decisão”. Sérgio Figueiredo terá ainda rematado dando a entender que o jornalista estaria fora da equipa, passando a integrar a redação: “Espero que amanhã combines com o Vasco Rosendo [chefe de redação] a escala quinzenal que ele te destina”.