A Polícia Judiciária (PJ) já ouviu o agente Pinho, autor dos relatórios da PIDE que apareceram à venda no OLX, depois de uma investigação do semanário SOL ter descoberto o seu paradeiro no norte do país. Quanto à proveniência da documentação e ao percurso realizado por aquele dossiê até ser notícia, não há muito mais a quem recorrer. Segundo o coordenador de investigação criminal da PJ do Norte, Pedro Silva, o agente Pinho foi importante, uma vez que identificou a sua assinatura e assumiu que as informações foram por ele produzidas.
Além disso, juntou ao processo documentação que demonstra que não pode ter sido ele quem os retirou da sede da DGS do Porto. Mas, em termos técnicos, quem irá certificar esta documentação será um historiador a ser nomeado pela Torre do Tombo que vai ter acesso aos documentos e irá validá-los no tempo e no conteúdo – o chamado exame diplomático.
Em termos práticos, o inquérito deverá ser arquivado e a documentação remetida para a Torre do Tombo. A mulher que a colocou à venda no OLX foi dizer nos autos que não prescinde deles. Poderá, de facto, reclamar da decisão, mas o destino é incontrolável pois, nos termos da legislação que extinguiu a PIDE/DGS, todos os arquivos da polícia política têm de estar depositados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e, após exame e validação de que são autênticos, será para lá que serão reencaminhados.
Tal como o SOL avançou na edição deste fim de semana, os documentos foram confiscados no dia 23 de abril, depois de a Diretoria do Norte da PJ ter sido alertada pela Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) para o anúncio da sua venda, que surgira no site OLX. Do lote colocado à venda faziam parte negativos de retratos fotográficos acompanhados das impressões digitais de cerca de 700 pessoas – próprios dos cadastros policiais –, e ainda um dossiê com a compilação de informações sobre umas duas centenas de indivíduos que se inicia a 13 de novembro de 1971 e termina a 12 de outubro do ano seguinte.
João Baptista Pinho, antigo agente de segunda classe da PIDE/DGS no Porto, assumiu a elaboração desses documentos e contou a sua história, assumindo a própria assinatura nos relatórios de investigação a que procedeu. João Baptista Pinho confirmou ainda que elaborava os relatórios de investigação a pedido da sua chefia na DGS/Porto, com o motivo de averiguar o “comportamento moral e político” dos visados. Estes documentos, chamados fichas de informação, são na sua maioria sobre homens a cumprir serviço militar, funcionários públicos e trabalhadores propostos para cargos de responsabilidade ou já em funções em sindicatos.
João Baptista Pinho concorreu à corporação enquanto cumpria o serviço militar em Angola. Em finais de 1972, porém, o Governo aprovou um subsídio de tecnicidade e risco no valor de 700 escudos mensais para os membros da PJ e da DGS que os agentes da polícia política não terão recebido, o que motivou alguns deles a fazerem um abaixo-assinado de protesto em que o nome do jovem investigador técnico figurava em quarto lugar. Nessa altura, Pinho terá sido colocado de castigo em Moçambique, onde permanecia quando ocorreu o 25 de Abril.
Após o derrube da ditadura, ainda trabalhou nessa antiga colónia portuguesa com os Serviços de Informação Militar. Três meses após a Revolução de Abril, porém, foi colocado num avião para Lisboa, onde seria detido juntamente com outros antigos elementos da DGS. Pinho seria depois condenado, em 1976, a 14 meses de prisão, uma sentença que não produziu qualquer efeito, uma vez que já tinha cumprido 19 meses preso. Com a extinção da antiga secreta, o que levou à sua expulsão da função pública, Pinho teve, depois, vários ofícios: trabalhou uns tempos como serralheiro e acabou como funcionário da EDP enquanto se licenciava em Geografia. Quanto ao seu passado, o agente não transporta consigo quaisquer pesos: “Não fiz nada que hoje os serviços secretos não façam”, afirma.
Da sua curta passagem pela DGS, João Baptista Pinho não guarda grandes histórias, mas faz questão de realçar que ele, como muitos agentes de base, não tinha formação política. Narra, a propósito, um episódio que lhe valeu uma reprimenda dos superiores: “Quando investigava uma pessoa, falava sobretudo com vizinhos e com os padres das freguesias, que era quem mais colaborava. Na maior parte dos casos, eram pessoas simples que não tinham qualquer ideologia e era fácil obter informação. Mas um dia calhou-me um opositor, já com formação, e eu, como sempre fui franco, liguei-lhe e fiz-lhe algumas perguntas. Claro que, quando o meu chefe soube, zangou-se e disse-me que eu tinha andado a falar com o inimigo”.
O facto de o agente estar em Moçambique aquando do fim do regime e de as instalações da PIDE/DGS no Porto serem ocupadas pelos militares rebeldes logo em consequência do golpe de Estado elimina a possibilidade de ter sido ele a roubar a documentação do arquivo da polícia política nesta cidade. Do ponto de vista jurídico, aliás, as autoridades judiciais poderão ter alguma dificuldade em incriminar a detentora destes materiais. É que, a ter havido furto da documentação, o crime encontra-se há muito prescrito.