De bíblia na mão, com helicópteros a sobrevoá-lo, rodeado por polícia de choque e militares que dispararam gás lacrimogéneo e balas de borracha contra a multidão, Donald Trump abriu caminho da Casa Branca até à Igreja Episcopal de St. John, que sofrera um pequeno incêndio nos protestos pelo homicídio de George Floyd. A imagem, captada na segunda-feira sumariza bem a sua estratégia: enquanto o país arde, Trump chegou a prometer abrir fogo contra os motins, para gáudio da sua base conservadora cristã. Não que todos os cristãos alinhem nesta retórica de “lei e ordem”, atenção.
“O Presidente não veio rezar, não lamentou a morte de George Floyd ou reconheceu a agonia coletiva das pessoas de cor na nossa nação”, criticou a episcopisa de Washington, Mariann Budde, que não foi avisada da visita. “Ele usou a bíblia e uma Igreja da minha diocese como pano de fundo para uma mensagem contrária aos ensinamentos de Jesus”, disse ao Washington Post. Aliás, entre a multidão estava a antiga líder da diocese, Gini Gerbasi, que foi atingida por gás lacrimogéneo enquanto distribuía água a manifestantes pacíficos. “Foi um golpe publicitário barato”, queixou-se no Facebook.
Ontem, foi o sétimo dia consecutivo de protestos, mais de 5600 detenções depois, segundo a contagem da AP. Enquanto o Presidente promete enviar “milhares e milhares” de tropas para “dominar as ruas”, o descontentamento alastra por todo o país, assim como as acusações de uso excessivo da força pelas autoridades.
Entre as vítimas está David McAtee, o popular dono de uma churrascaria em Louisville. Era descrito pela sua comunidade como “uma lenda”, “uma pessoa boa e decente”, “alguém que doava todo o seu tempo e comida”. Até costumava oferecer refeições gratuitas a polícias – mas foi abatido por um deles a tiro, na segunda-feira, enquanto protestava, segundo o USA Today.
Também houve mortos em estados como Minnesota, Indiana e no Nebraska. Além disso, cinco polícias foram baleados durante motins e saques a lojas, segundo a Reuters, ficando um deles em estado crítico. Um centro comercial foi queimado em Los Angeles e vitrinas de lojas de luxo partidas no Rockefeller Center, em Nova Iorque.
Em ambas as cidades foi declarado recolher obrigatório. Em Los Angeles é proibido sair à rua entre as seis da tarde e as seis da manhã, as mais duras medidas desde a absolvição dos polícias que espancaram brutalmente Rodney King, em 1992. Já em Nova Iorque é proíbido sair entre as 11 da noite e as cinco da manhã, algo que já não acontecia há mais de 70 anos. Nem sequer durante os enormes motins raciais de 1968, quando Richard Nixon concorreu como candidato da “lei e ordem” após o assassinato de Martin Luther King.
Entretanto, os abusos multiplicam-se. Em Nova Iorque, um agente foi filmado a arrancar a máscara de um homem negro, que estava parado com as mãos no ar, despejando-lhe gás pimenta no rosto. Na mesma cidade, no fim de semana, nem políticos eleitos escaparam: o senador estatal Zellnor Myrie foi alvo de gás pimenta, atingido com bicicletas da polícia e detido numa manifestação pacífica, antes que se apercebessem quem ele era.
Entretanto, dois carros da polícia já tinham acelerado contra a multidão, que lhes atirava objetos, mostram vídeos nas redes sociais. A reação do presidente da Câmara de Nova Iorque, o democrata Bill De Blasio, dificilmente deixará os manifestantes satisfeitos. Apesar de prometer investigar o assunto, fez questão de salientar: “Não vou culpar os agentes que tentaram lidar com uma situação impossível”.
Já em Minneapolis, a cidade onde George Floyd implorou pela vida enquanto era sufocado pelo joelho de um polícia, uma fotografa freelancer ficou cega de um olho, durante os protestos, devido a uma bala de borracha. Outro repórter, Ali Velshi, da MSNBC, foi atingido numa perna. “Estou bem”, escreveu no Twitter. “Polícia estatal, apoiada pela Guarda Nacional, disparou sem qualquer provocação para uma marcha completamente pacífica”.
Uma cidade calma A pacata Minneapolis, que partilha a alcunha de Twin Cities com Saint Paul, costuma ser considerada dos melhores sítios para se viver nos EUA, um local conhecido pela afabilidade dos seus habitantes. Ainda assim, muitos não ficaram completamente surpreendidos que se tenha tornado no centro de um dos maiores protestos a abalar o país em décadas.
“Só podes humilhar uma pessoa até certo ponto, até que respondem”, disse Sandra Richardson, People’s Institute for Survival and Beyond, um movimento antiracista da cidade. “Não era uma questão de se ia acontecer. Era quando”, explicou à Times.
Como Richardson, cada vez mais pessoas se organizavam contra o racismo nas Twin Cities, sobretudo desde a morte de Eric Garner, em 2014, e do arranque do movimento Black Lives Matter. É que Minneapolis não era de todo imune ao racismo, asseguram: não faltavam casos de brutalidade policial, numa cidade que tem das maiores disparidades económicas entre negros e brancos do país, apesar da boa qualidade geral de vida.