José de Figueiredo acertou na identificação do ‘Homem de Chapeirão’ com o infante D. Henrique. Aqui não inovara: era ponto assente, desde havia décadas, que aquele príncipe assim estava retratado, e com os mesmos traços, na iluminura de um códice dado a conhecer aos portugueses em 1841 pelo visconde de Santarém, um diplomata nosso residente em Paris, que trocara a política pela erudição.
Tal justificava que o painel do políptico de Nuno Gonçalves onde D. Henrique figurava – um dos dois mais largos, e o terceiro contado da esquerda na disposição atual – fosse designado pelo próprio Figueiredo de ‘Painel do Infante’ – o de Sagres, entenda-se.
O nome perdurou mas a dúvida foi-se insinuando com respeito à identificação. Neste ponto andou-se para trás e de forma atarantada; de forma inadmissível, portanto, se pretendermos manter uma visão crítica e lógica na questão. Assim, nas linhas que se seguem, demonstraremos, para além de qualquer dúvida razoável, como o ‘Homem de Chapeirão’ é D. Henrique.
Com esse fim em mente, consideremos o acima referido códice, pertencente à Bibliothèque nationale de France (BnF): a Crónica dos feitos da Guiné, datada de 1453.
O códice é constituído por um corpo de 161 folios (folhas) em velino (pergaminho fino) com dimensões de 32 cm de alto por 23 de largo. O texto da crónica está manuscrito em duas colunas e ocupa 319 das 322 páginas disponíveis (o dobro de 161 folhas). Algumas folhas iniciais e finais em papel enquadram os folios de pergaminho na encadernação, que é antiga mas posterior ao século XV, e contêm apontamentos que fornecem pistas sobre os sucessivos possuidores do códice centenário. Estes foram, sem motivo para espanto, aristocratas e diplomatas eruditos. O facto de eles serem não portugueses e de haver notícia, logo em Quinhentos, que historiadores nacionais desconheciam o paradeiro de uma Crónica de Guiné de Zurara, sugere vivamente que o códice da BnF terá saído de Portugal há vários séculos. Especular sobre o itinerário do códice é tarefa ingrata e aparentemente vã. Mais importante será a análise do próprio códice.
O texto do códice contém uma carta dedicatória inicial do autor, Gomes Eanes de Zurara (1410-1474), ao Rei D. Afonso V, que encomendara a obra. Esta carta está explicitamente datada de 23 de fevereiro de 1453. Segue-se-lhe o índice dos noventa e sete capítulos. No último capítulo, o copista João Gonçalves regista ter acabado o seu mester na livraria d’ El-rei D. Afonso V, no dia 18 de fevereiro de 1453 – cinco dias antes da data na carta dedicatória de Zurara, frise-se –, dando graças a Deus por isso. Trata-se de um cólofon em regra, escrito que conferia dignidade ao trabalho recém-acabado.
No folio 5 verso surge a conhecida iluminura do ‘Homem de Chapeirão’, tendo em baixo a divisa do infante D. Henrique – ‘talant de bien faire’ –, enquadrada por folhagens e glandes, características da heráldica de D. Henrique. No folio seguinte, o sexto, começa o texto da crónica com um muito curto preâmbulo, destacado este em letras vermelhas e onde Zurara afirma (as formas arcaizantes foram modernizadas): «Aqui se começa a crónica na qual são escritos todos os feitos notáveis que se passaram na conquista de Guiné por mandado do muito alto e muito honrado príncipe e muito virtuoso senhor o infante D. Henrique duque de Viseu e senhor de Covilhã regedor e governador da cavalaria da ordem de Jesus Cristo. A qual crónica foi juntada neste volume por mandado do muito alto e muito excelente príncipe e muito poderoso el-rei D. Afonso o quinto de Portugal.»
Texto mais explícito seria difícil exigir a Zurara. E agora chegamos a uma constatação verdadeiramente crucial: a iluminura e o início do texto pertencem a um mesmo caderno (o octavo que reúne os folios 5 a 12). Considere-se o seguinte juízo feito por um conjunto de especialistas – um dos quais, François Avril, com nome internacionalmente reputado – numa publicação de 1983 da BnF: «O exame do manuscrito mostrou que o folio 5 verso, onde está pintado o retrato, é de facto solidário [«est bien rattaché»] com o segundo caderno […]. A marca de um vinco no folio 5 verso é também visível, se bem que menos pronunciada, nos folios 1 a 5; no folio 5 verso, ela afeta as letras douradas da divisa (topo e barra do f e letra a da palavra faire), atravessando o fundo negro (que não é um repinte).»
José-Augusto França fez em 1989 a recensão do então recém-publicado livro de Dagoberto Markl, O Retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa e os documentos. Na recensão é citada uma carta escrita por François Avril a J.-A. França reiterando em 1989 um juízo semelhante àquele de 1983, que foi acima transcrito.
Recapitule-se: o códice da BnF é uma obra manuscrita coerente e íntegra, que reporta os feitos do infante D. Henrique e dos homens ao seu serviço na exploração e conquista da costa de África até ao ano de 1448. O manuscrito foi terminado na livraria de D. Afonso V em 18.2.1453 e dedicado cinco dias mais tarde ao monarca por Zurara, o seu autor, que era então guarda e conservador da livraria real e seria nomeado no ano seguinte sucessor de Fernão Lopes como guarda-mor da Torre do Tombo.
Não surpreenderia que a iluminura no folio 5 verso proviesse da mão de Nuno Gonçalves – que fora nomeado pintor régio de D. Afonso V em 1450 – e que o desenho preparatório anteriormente destinado ao Painel do Infante fosse reutilizado pelo próprio Gonçalves. A semelhança com o rosto no Painel do Infante quase implicaria ‘plágio’, caso o autor da iluminura fosse outro. Mas, acima de tudo, registe-se a boa mão revelada na iluminura. São atribuídas iluminuras de grande qualidade a Jan van Eyck e a Roger van der Weyden; Jean Fouquet é outro exemplo de pintor-iluminador do século XV. A inversão por simetria do rosto de D. Henrique na iluminura – por comparação com o pintado no Painel do Infante – é compreensível quando for reconhecido como seria menos harmonioso representá-lo apartando a sua visão do texto, que se inicia no contíguo folio 6 recto. Tendo em conta a datação do políptico para 1445, o retrato no Painel do Infante deve ser considerado de execução mais antiga do que o do códice da BnF.
Note-se, também, como 1445 e 1453 distam de oito anos, menos, portanto, do que os dezassete ou mais que separam 1453 dos anos da década de 1470. De passagem, aponte-se um escolho inultrapassável para uma das identificações que tantas vezes é avançada para o adolescente fronteiro a D. Henrique, no Painel do Infante: como poderia ser ele D. João II, um príncipe nascido em 1455?
Conhecem-se mais dois retratos contemporâneos do Infante: o rosto da estátua jacente no seu túmulo no Mosteiro da Batalha e a descrição pela pena de Zurara no capítulo 4.º da Crónica de Guiné. Esta é pouco esclarecedora: «[…] a cabeladura havia algo tanto alevantada, a cor de natureza branca, mais pela continuação do trabalho, per tempo tornou doutra forma. Sua presença de primeiro esguardo [à primeira vista] aos não usados era temerosa.»
Concordantemente, no Painel do Infante a tez de D. Henrique é algo mais escura do que a dos familiares circundantes, mesmo quando o craquelé aparente na superfície pintada do seu rosto é tido em conta. Reconhecem-se sulcos profundos à volta das fossas orbitais e na testa da efígie esculpida na Batalha; o rosto, mais pesado, sugere maior corpulência e idade mais avançada. Nada mais natural! Trata-se do retrato de D. Henrique — e o termo retrato é bem apropriado às estátuas jacentes portuguesas do século XV — no ano da sua morte, em 1460, década e meia mais tarde do que no Painel do Infante.
A desconstrução do rosto do infante
Face ao acima exposto, o leitor será levado a pensar, com bom senso: mas porquê pôr em causa a evidência de que a iluminura da crónica de Zurara representa o infante D. Henrique? Arrisca-se um processo de intenção como explicação: sabendo-se como a imagem do ‘Homem de Chapeirão’ esteve omnipresente nas evocações da Época dos Descobrimentos pelo regime de Salazar, poderá a tentativa de ‘desconstrução do rosto do Infante’ revelar um desejo, consciente ou não por parte de alguns autores, de colocar um ‘grão de areia’ na utilização do ícone henriquino pelo Estado Novo? Tanto mais que os argumentos invocados na tentativa são de vária ordem mas sempre não convincentes, devido ao seu caráter rebuscado: lançamento de suspeitas sobre a manipulação da iluminura e sua introdução espúria no códice – contrariando a evidência do atrás referido octavo que a contém; conjetura sobre erros do copista ao escrever as datas de 1453 no mesmo códice – desvirtuando a solenidade do cólofon e da carta dedicatória; interpretação do próprio texto da crónica como tendo partes posteriores à morte do infante (1460) – não reconhecendo a cronologia coerente dos feitos narrados, que não vão além de 1448; hipótese de o manuscrito ser posterior à morte do próprio Zurara (1474), chegando-se a avançar datas do início do século XVI – contrariando toda a aparência de o códice na BnF ser um produto do scriptorium associado à livraria real de Lisboa em meados do século XV; extrapolações da descrição fisionómica de D. Henrique, já citada do capítulo 4.º da crónica – tentando delinear, abusivamente, um rosto a partir de características vagas da cabeleira, da tez e da expressão porventura autoritária.
Duarte Leite (Àcerca da «Crónica» dos Feitos de Guinee; Bertrand, 1941) tentou provar, através de múltiplas referências ao texto de Zurara, que este texto é posterior ao falecimento do infante D. Henrique. Malgrado todo o detalhe posto na tentativa, a erudição de Leite não foi convincente. Com efeito, pensa-se que as construções verbais de Zurara são as de um áulico de Quatrocentos, que revelam o melindre de escrever o panegírico de alguém ainda em vida. Tal melindre não terá sido muito distinto daquele que, porventura, se sentirá hoje ao erigir uma estátua a um político em exercício, ou ao escolher-lhe o nome para a toponímia.
José Saraiva, na Nota III de Os Painéis do Infante Santo (1925) analisara com acerto o texto de Zurara, embora não tivesse a oportunidade de manusear o códice de Paris ou de conhecê-lo através de boas reproduções fotográficas. De outras facilidades dispomos hoje: alicia-se o leitor a obter a reprodução integral do códice de Zurara no site da BNF.
António José Saraiva, atendendo à análise de José Saraiva, refere na sua História da Cultura em Portugal: «não aderimos à tese sustentada por Costa Pimpão e por Duarte Leite, segundo a qual no texto conhecido da Crónica da Guiné se juntaram duas obras diferentes, uma das quais, pelo menos, posterior a 1453.»
Espera-se, neste ponto, ter convencido o leitor de que dispomos de dois retratos do infante D. Henrique perfeitamente concordantes, datado um deles de 1445 e o outro de 1453. A natureza insofismável do segundo, o de 1453, abre uma via real para a identificação consistente das personagens da mais alta jerarquia que, reunidas pelo pincel de Nuno Gonçalves em 1445, acompanham D. Henrique em homenagem ao infante mártir. Com efeito, o elo familiar dá uma coerência inédita a esta série de identificações nos dois painéis centrais do políptico e no Painel do Cavaleiros, numa disposição que abarca duas gerações sucessivas da família de Avis e que, respeitando o protocolo, inclui desde D. Duarte, o responsável máximo pela expedição a Tânger, até ao conde de Arraiolos, o filho mais novo do duque de Bragança.
Chamou-se atrás a atenção para o luto visivelmente carregado do ‘Homem de Chapeirão’ no Painel do Infante, quiçá, marca de especial contrição: como mais um ponto de coerência da tese fernandina, frise-se que, em 1437, junto às muralhas de Tânger, D. Fernando se entregara em reféns em substituição de, precisamente, o seu irmão D. Henrique.
Recorde-se o vaticínio de Sir Herbert Cook: «A maior parte das personagens são claramente retratos, e não seria impossível a um historiador identificá-los.» Tudo leva a crer que o vaticínio se cumpriu: nas suas grandes linhas, o problema era afinal resolúvel.
‘Não ha operação mais grave do que a limpeza d’um quadro’
Lança-se a sugestão seguinte: porque não tentar, através de uma judiciosa troca de património cultural com o Estado Francês, ou por compra, obter o Códice de Zurara de volta para Portugal? Não foi o conhecido Retrato de D. João I, antes no Kunsthistorisches Museum de Viena, adquirido em 1952 para o MNAA? Mas, tarefa bem mais fácil, porque não pede o nosso Ministério da Cultura à BnF uma peritagem codicológica exaustiva à Crónica dos feitos da Guiné?
Concordantemente e antes que se inicie o restauro do Políptico de Nuno Gonçalves, aprazado para os próximos dias: porque não ordena o mesmo Ministério uma peritagem à zona da pintura do Painel do Infante onde se encontram as inscrições autorais de Nuno Gonçalves? A uma delas, frise-se bem, segue-se a reveladora data de 1445.
Mas, perguntará o leitor, não permitirá o restauro e a limpeza das tábuas melhor aquilatar a tira dourada na bota do jovem adolescente? Responde-se, não a despropósito, citando José de Figueiredo (O Pintor Nuno Gonçalves): «Contra o que é corrente, não ha operação mais grave do que a limpeza d’um quadro. Mal feita, a obra d’arte pode considerar-se perdida. E assim diz algures, muito justamente, um grande technico francez que o mal dos repintadores é nullo, comparado com o que causam os que, sem competencia para isso, se propõem restituir ao estado primitivo as pinturas alteradas com retoques posteriores. O segundo mal tem remedio; o primeiro não; pois, emquanto um technico habil póde eliminar o que foi acrescentado, o que não póde, de fórma alguma, é restituir-lhe o que as lavagens inconscientes lhe arrancaram. E este perigo é, sobretudo, grande nas obras dos pintores primitivos, por causa dos seus processos especialissimos.»
Contraporá o leitor que no ano de 2020 os riscos apontados por Figueiredo estão completamente arredados. Não necessariamente e como exemplos do melindre de qualquer restauro citam-se dois casos significativos recentes. O primeiro caso obrigou Mariano Rajoy, então Ministro da Educação e Cultura, a justificar-se em 1999 na Câmara dos Deputados por um restauro que tornara quase ilegível a assinatura de El Greco no Cavaleiro da mão ao peito, famoso quadro do Museu do Prado. O segundo caso, fresco de há poucos meses, respeita ao restauro do célebre Políptico de Ghent, da autoria dos irmãos Van Eyck.
Na pintura de El Greco, a inscrição autoral era explícita. No políptico atribuído a Nuno Gonçalves, a inscrição no botim do jovem adolescente tem sido considerada por sucessivas direções do MNAA, apesar da publicação do seu significado em 2000, como mera tira decorativa. Em particular, o ano de 45 – representado por Rb, de acordo com o uso paleográfico português daquela época – ocupa um espaço exíguo no extremo da tira dourada, tira que na sua totalidade tem cerca de sete centímetros de comprimento. É obrigatório que aquela zona da pintura, fulcral para o entendimento iconográfico do políptico, se mantenha íntegra, disponibilizando-a na sua forma prístina às gerações futuras de investigadores e de amantes da pintura portuguesa.
Apela-se a que o processo do restauro prestes a iniciar-se contribua para, uma vez varridas as teias da confusão e do encobrimento, vermos finalmente os Painéis de Nuno Gonçalves rebrilharem à luz da razão no MNAA. Do já longo texto, que agora se termina, resultará a convicção de que o infante D. Henrique – ele, uma vez mais – poderá revelar-se providencial em tal tarefa.
Jorge Filipe de Almeida
(DPhil pela Universidade de Sussex, Reino Unido)