A morte de George Floyd (ver págs. 22-23) desencadeou uma onda de movimentos antirracistas por todo o planeta. Da solidariedade com os protestos nos Estados Unidos, os manifestantes em todo mundo exigem uma revisão do passado racista dos seus próprios países. Da queda de estátuas de comerciantes de escravos, muitos exigem também que se olhe para dentro, sublinhando a morte de pessoas não-brancas no passado recente, do Canadá à Austrália.
O rosto do cidadão afro-americano de 46 anos, cujo funeral ocorreu esta terça-feira, já se encontra nos murais de Belfast, Irlanda do Norte, no muro de Berlim e num edifício bombardeado em Idlib, na Síria. “Não consigo respirar”, as suas últimas palavras, além de gritadas por dezenas de milhares um pouco por todo o globo, estão pintadas em várias paredes das maiores metrópoles do mundo, como em Montreal, Canadá. Os cartazes “Sem justiça, não há paz” e “Desmantelar a polícia”, circularam nas ruas de Roma, Madrid, Lisboa e de Wellington, na Nova Zelândia, entre várias outras.
No Reino Unido, além do tributo a Floyd, os manifestantes protestavam contra o tratamento desigual de negros britânicos e – à semelhança do que muitos reivindicam em Portugal – a pouco estudada violência do império britânico. Em Bristol, a estátua de Edward Colston, um comerciante de escravos do século XVII e XVIII, foi derrubada e atirada para o rio. A sua estátua é fonte de controvérsia na cidade britânica há muitos anos e o seu derrube obrigou os britânicos a revisitarem o seu passado imperial e colonial: Colston foi membro da Companhia Real Africana, que transportou cerca de 80 mil homens, mulheres e crianças de África para as Américas. A memória do traficante de escravos está espalhada em memoriais, ruas e edifícios de Bristol por ter doado a sua riqueza na altura da sua morte. Esta terça-feira, o Museu de Londres Dockinglands retirou a estátua de Robert Milligan, comerciante de escravos do século XVIII, por considerar não ser mais aceitável para a comunidade local.
Ainda no Reino Unido, em Londres, uma estátua de Winston Churchill foi grafitada: “Era uma racista”, escreveram. O debate sobre a memória e legado do emblemático primeiro-ministro britânico, muitas vezes representado como antifascistas devido ao seu papel na derrota do nazismo de Adolf Hitler, é um foco de tensão já há muito tempo entre vários quadrantes do espetro político britânico.
Seja como for, é reconhecido que o homem forte do Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial era racista, até mesmo entre os seus mais fervorosos defensores, e odiado por muitos nas antigas colónias britânicas. Churchill defendeu o uso de armas químicas contra a revolta no Iraque em 1920, na altura em que o país era um território do império. “Sou fortemente a favor da utilização de gás venenoso contra tribos não-civilizadas”, disse na altura.
Os apelos à revisão da memória histórica foram semelhantes na Bélgica, onde se exigiu que se retirassem os sinais de rua e de praças públicas nomes como o do Rei Leopoldo II, um monarca acusado de cometer atrocidades no Congo, mesmo para as padrões europeus. As estátuas do rei foram queimadas em Antuérpia, pintadas de vermelho em Gent e rotuladas com “assassino” em Bruxelas.
Na Austrália os cartazes onde se lia “não consigo respirar” não invocavam apenas a memória de George Floyd, mas também de David Dungay Jr., que gritou a mesma frase pelo menos uma dúzia de vezes enquanto cinco guardas o seguravam no chão numa cadeia em Sydney. O homem indígena de 26 anos tinha diabetes e esquizofrenia e os guardas prisionais arrastaram-no para outra cela depois de Dungay se ter recusado a comer um pacote de biscoitos. Os polícias disseram que estavam preocupados com os seus níveis de açúcar, mas uma hora depois estava morto.
Os canadianos aproveitaram a vaga de protestos mundiais para exigir respostas sobre a morte de Regis Korchinski-Paquet, uma mulher africana de 29 anos que morreu depois de cair 24 andares, da varanda de sua casa em Toronto, quando se encontravam polícias lá dentro. Muitas dúvidas recaem sobre o papel da polícia na sua morte, que ocorreu dois dias depois da de Floyd.
Em França aproveitou-se o momento para se desenhar paralelos entre a morte de Floyd e a de Adama Traoré, em 2016. O cidadão negro de 24 anos morreu sob a custódia da polícia e o resultado da autópsia mostrou que o seu falecimento foi causado por estrangulamento. Na segunda-feira, o ministro do Interior, Cristophe Castaner, anunciou que o método de estrangulamento, para efeitos de detenção, vai ser abandonado.