Os ecos dos protestos contra o racismo desencadeados pela morte de George Floyd chegaram ao mundo do cinema e da televisão. Para já, na forma de ‘purga’ dos conteúdos que podem ser entendidos como uma forma de «perpetuar» os comportamentos racistas.
Os casos sucedem-se. A Disney, por exemplo, evitou trazer para o catálogo do seu serviço de streaming – o Disney+, lançado há menos de um ano – o filme A Canção do Sul. Lançado em 1946, produzido por Walt Disney, e lançado pela RKO Radio Pictures, foi a primeira película da Disney a utilizar atores reais que interagiam com a animação. Ambientado numa plantação, a partir da das histórias de Joel Chandler Harris (Uncle Remus), o filme foi mal recebido desde o início e as acusações de racismo sucederam-se, ao ponto de, ainda hoje, ser conhecido como uma espécie de ‘filme invisível’ dos estúdios, visto que foi rapidamente enfiado numa gaveta.
Já na televisão, a Paramount cancelou o programa Cops, que exibia há seis anos, depois de ter adquirido os direitos do programa à FOX, canal no qual Cops durou 25 temporadas. O programa tinha como estrelas os polícias dos Estados Unidos, que eram filmados ao estilo de reality-show durante o seu trabalho. A nova temporada já devia ter estreado na Paramount, mas os responsáveis pelo canal resolveram banir o formato devido à tensão nos EUA. «Não temos planos, nem atuais nem futuros, para o programa voltar à grelha», confirmou um porta-voz da cadeia à Hollywood Reporter.
As mudanças trazidas pela morte de George Floy continuam também a fazer-se sentir no streaming. A HBO Max, uma das plataformas de streaming detida pela WarnerMedia, retirou esta semana filme E Tudo o Vento Levou do seu catálogo nos EUA. A longa-metragem de Victor Fleming, lançada em 1939, deixou de estar disponível depois dos violentos protestos contra o racismo desencadeados pela morte de George Floyd. Na terça-feira, John Ridley, do escritor e argumentista – que assinou o argumento do filme 12 Anos Escravo (2013), e que lhe valeu o Óscar de Melhor Argumento Adaptado – tinha publicado uma coluna de opinião no Los Angeles Times onde se refere especificamente ao filme, considerando que a trama «ignora» os «horrores» da escravatura e «perpetua os estereótipos mais dolorosos das pessoas de cor».
Ridley afirmou ainda que a história de E Tudo o Vento Levou, que decorre durante o período da Guerra da Secessão dos EUA (1861 a 1865), «glorifica» o passado esclavagista nos EUA. Durante o período que opôs o norte e o sul do país, os estados do Sul tentaram proclamar a sua independência fazendo fica pé num ponto: a não abolição da escravatura. No filme, considerado um dos clássicos do cinema, o conflito vai acompanhando a história de amor de Scarlett O’Hara e Rhett Butler.
À CNN, um porta-voz da HBO Max afirmou que o E Tudo o Vento Levou é um «um produto de seu tempo e descreve alguns dos preconceitos étnicos e raciais que, infelizmente, têm sido um lugar comum na sociedade americana». «Essas representações racistas estavam erradas na época e estão erradas hoje, e achamos que manter o filme sem explicação e sem uma denúncia dessas representações seria irresponsável», afirmou. O porta-voz acrescentou que, quando o filme voltar à HBO Max, «voltará com uma discussão do seu contexto histórico e uma denúncia dessas mesmas representações», e será apresentado «como foi criado originalmente, porque fazer o contrário seria o mesmo que alegar que estes preconceitos nunca existiram». Sem confirmar uma data para o regresso do filme ao portefólio da plataforma, o porta-voz da HBO sublinhou ainda que o canal acredita na importância do conhecimento do passado do país para um futuro menos dividido, e afirma que esta decisão vem também nesse sentido. «Se queremos criar um futuro mais justo, equitativo e inclusivo, precisamos primeiro reconhecer e entender a nossa história», afirmou.
Entre o elenco de E Tudo o Vento Levou, contava-se Hattie McDaniel, que se torna primeira atriz afro-americana a vencer um Óscar – neste caso, o de Melhor Atriz Secundária pelo papel da escrava Mammy – que seria entregue a 29 de fevereiro de 1940. Na época, Hattie foi a primeira mulher negra a ser convidada para a cerimónia mas, por causa das leis da segregação racial, não pôde sentar-se juntamente com o restante elenco. Durante a sua carreira, desempenhou maioritariamente papéis de empregada e foi criticada pelos seus pares por os aceitar, que consideravam que Hattie contribuía desta forma para a consolidação do estereótipo. Na altura, não era permitido aos atores negros desempenharem papéis violentos e os romances entre brancos de negros estavam também proibidos.
Navegando entre no limbo dos papéis (quase sempre) pouco relevantes e as críticas da comunidade negra, a carreira da atriz não foi fácil.
Certa vez, cansada de justificar por que aceitava os papéis, chegou a afirmar, naquela que se tornaria na sua declaração mais conhecida, que preferia interpretar o papel de uma empregada doméstica por 700 dólares do que trabalhar efetivamente como uma por 7.