Hoje, no rescaldo do homicídio de George Floyd e de protestos maciços contra o racismo sistémico e a brutalidade policial, debate-se o legado do colonialismo e da escravatura a cada esquina. Literalmente a cada esquina: dos EUA à Bélgica, do Reino Unido a Portugal, fala-se da retirar ou contextualizar memoriais a figuras coloniais ou racistas, em tempos consideradas dignas de homenagem.
«Faz parte de um questionamento que não surgiu esta semana. Basta pensar na questão das estátuas da Confederação nos EUA, já havia um movimento», relembra Miguel Cardina, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Parte de uma discussão que já tem décadas, «da necessidade de descolonizar a História, trazer outro discurso para lá do patriótico, centrado nos grande líderes, no poder do Estado, dos reis, dos grandes senhores», argumenta Cardina.
Já para João Paulo de Oliveira e Costa, esse é um dos problemas. «Do ponto de vista do memorialismo, para que haja estátuas é preciso que haja heróis», afirma o professor da professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA-FCSH). «A produção de monumentos coletivos é um processo em evolução, muito lento e raro», assegura. Para o historiador, quem está descontente, em vez de remover ou alterar memorais, «pode e deve tentar acrescentar», lembrando casos como as estátuas de Nelson Mandela em Lisboa e no Funchal, ou o memorial ao massacre de cristãos-novos, em 1506.
Não é uma solução tão simples quanto parece. «Temos o espaço público saturado de uma representação unilinear do passado», avisa Carlos Almeida, investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa. «Não estamos a falar de História, estamos a falar do presente. Quando decidimos assinalar certos acontecimentos construímos discurso sobre o nosso presente, como nos queremos representar enquanto comunidade».
«Quando falamos em determinadas estátuas, temos de ter em conta não tanto o que evocam – essa é uma discussão que podemos fazer. Mas muitas vezes o que está em causa é o contexto em que esse monumento aconteceu», concorda Cardina. Aliás, é esse o caso de muitas estátuas confederadas, construídas bem depois da Guerra Civil nos EUA: a vasta maioria surge nas décadas de 1910 e 1920, quando entravam em vigor as leis de Jim Crow, que formalizaram a segregação, ou nas décadas de 1950 e 1960, quando essas leis eram contestadas, segundo o Southern Poverty Law Center.
No que toca Portugal, como em boa parte da Europa, o foco da discussão é o legado colonial, apesar de nos EUA também ser contestadas a memória de colonizadores, como Cristovão Colombo – foram vandalizadas estátuas em Boston, Miami, Richmond e Houston.
Já em Antuérpia, as autoridades retiraram uma estátua do Rei Leopoldo II, enquanto em Bristol manifestantes derrubaram uma estátua de Edward Colston, instalada em 2008. Este esclavagista traficou pelo menos 84 mil pessoas: marcavam-nas a ferro quente com as iniciais da empresa. Cerca de 20 mil das vítimas acabariam por morrer a bordo de navios-negreios, entre África e as Américas, sendo deitadas ao mar, como seria a estátua de Colston.
Seja um memorial, uma estátua, um busto ou até o nome de uma rua, «a sua presença é histórica, tal como o seu questionamento é parte da história», considera o investigador do CES. E já surgem soluções originais, como a proposta de Bansky quanto à estátua de Colston. «Tiramo-lo da água, colocamo-lo de volta no plinto, atamos um cabo ao seu pescoço e mandamos fazer algumas estátuas de bronze, em tamanho real, de manifestantes no ato de derrubá-lo. Todos ficam contentes», escreveu o artista no Instagram.
O ovo e a galinha
«Claro que distingo o que é um Leopoldo II, que de facto foi responsável por genocídios, de outras pessoas que lideraram processos coloniais mas não podem ser acusados de ser facínoras», garante Oliveira e Costa, que ainda assim vê uma certa diabolização da história colonial – faz questão de salientar que a escravatura não é de todo uma prática inventada por europeus.
«Os negros já eram transportados desde o século VII, pelo menos, através do oceano Índico da mesma maneira, vendidos na praia por outros africanos», relembra o historiador da NOVA-FCSH. «Qual é a diferença entre o Índico e o Atlântico? Primeiro, começou mais cedo e não foi tão intenso. E no Índico, a maior parte desses negros foram usados nos exércitos, não em plantações. Consequentemente, muitos não tiveram filhos, não se criaram grupos etnicamente negros».
Mas há outra diferença, importa lembrar: nos exércitos de escravos dos impérios islâmicos, das tropas mamelucas aos janízaros do império Otomano, tanto havia escravos negros como loiros de olhos azuis, capturados nas distantes montanhas do Caucaso.
«Sabemos que o tráfico atlântico de escravos constrói a ideia de excepcionalidade do negro africano», assegura Carlos Almeida. Apesar das tentativas anteriores de uso de indígenas como escravos, «a reconstrução da história dos filhos de Noé, dos três filhos que eram as três partes da humanidade, que os africanos estavam fadados, por maldição divina, à escravidão, é uma ideia construída sobretudo do século XVII», relembra. «É uma estratégia de justificação e legitimação do tráfico atlântico de escravos».
Há muito que os historiadores discutem se nasceu o primeiro ovo ou a galinha, o racismo ou o tráfico atlântico de escravos. Mas poucos têm dúvidas que o resultado ressoe ainda hoje.
«Claro que há racismo sistémico em Portugal e em toda a parte do mundo», admite Oliveira e Costa. «Evidente que, quando no Altântico quase todos os escravos são negros, isso começa a gerar uma relação de causa-efeito». Contudo, hoje, no caso específico de Portugal, aponta sobretudo o dedo ao sistema de ensino e aos programas de História, onde «os portugueses são os únicos sujeitos da ação. Nunca se explica convenientemente a complexidade e a sofisticação das sociedades africanas».
«Pense numa turma em que uns são brancos e outros negros», exemplifica o historiador. Ao mal se mencionar os sistemas políticos, sociais, económicos ou culturais de africanos, apresentando-os apenas como vítimas da escravatura, «isso faz com que qualquer jovem branco pense ‘sou descendente dos superiores’ e que qualquer jovem negro pense ‘sou descendente dos inferiores’».
Já Carlos Almeida nota outras ausências de peso no ensino da História em Portugal. Como as comunidades islâmicas que em tempos viveram em Portugal, até serem expulsas por um édito de D. Manuel, em 1496 – apenas os descendentes de judeus sefarditas, expulsos no mesmo processo, viram reconhecido o seu direito à nacionalidade, recentemente. Ou no que toca aos combatentes das guerras de libertação africanas, que tanto contribuíram para desencadear o 25 de Abril.
«Isso não tem qualquer reprodução no espaço público. Não temos nenhuma estátua, nenhum busto de Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto, Mário de Andrade ou de qualquer outro», salienta. «Sempre colocaram como adversário o regime fascista e nunca o povo português, isso é muito claro nos seus discursos. Isso devia levar-nos a pensar que o seu contributo é parte da nossa História».
Seja como for, «a História é sempre feita a partir do presente. E é sempre ‘contaminada’ por quem a faz, pelo contexto, pelos arquivos e fontes disponíveis e pelas perguntas orientadoras», lembra Miguel Cardina. «O discurso sobre o passado está em permanente revisão. A maneira como olhamos para o século XVI ou XVII, inclusive o século XX, não é mesma hoje que era há 50 anos atrás», garante. Já a questão de como isso se transcreve no espaço público continua em aberto.