É uma teia de interesses cruzados na área da construção civil e da contratação pública, vários negócios e uma investigação da Justiça. A construtora MRG, com sede em Seia, foi recentemente acusada num processo em que foram também acusados o eurodeputado do PSD e antigo presidente da Câmara de Gouveia e da Guarda Álvaro Amaro e vários outros autarcas. O atual Executivo da Câmara do Trancoso, que será uma das lesadas, decidiu levar na última quarta-feira a reunião de câmara a proposta de se constituir como assistente no processo e de reclamar uma indemnização, como confirmou ao SOL o atual presidente, sem querer acrescentar mais pormenores. Mas o esquema que terá tido a conivência de vários autarcas terá prejudicado entre 2007 e 2011 outros municípios, como os de Alcobaça, o de Gouveia e o do Sabugal.
A investigação do Ministério Público de Coimbra concluiu que a MRG e a empresa-veículo FSCD implementaram um «modelo de negócios» para concorrer às PPP dos municípios que permitia à construtora de Seia «alcançar ganhos excecionais, com margens de lucro anormalmente elevadas no contexto do mercado da construção civil». Além de conseguirem que alguns júris fossem constituídos por pessoas da sua confiança, descreve o MP, tinham «a vantagem acrescida de não se endividar diretamente (pois o financiamento bancário era obtido pela sociedade veículo)».
Com as condicionantes de endividamento colocadas aos autarcas, «o esquema delineado pelos arguidos Fernando Gouveia [MRG] e Marco Carreiro [FSCD], dava aos autarcas uma solução alternativa para o financiamento de obras que pretendiam apresentar em novo período eleitoral, contornando os constrangimentos financeiros e os limites legais ao endividamento que o investimento necessário para tais obras reclamava».
Os investigadores concluem ainda que no caso das obras feitas pela MRG em Trancoso, Alcobaça, Gouveia e Sabugal verificou-se uma «subversão das regras da contratação pública», com o arguido Fernando Gouveia a apresentar várias empresas por si controladas aos concursos lançados pelas quatro autarquias.
Situação, descreve o MP, que permitiu «à MRG e à FSCD obter um benefício que todos sabiam ilegítimo, e que implicava prejuízos para os cofres dos municípios ao longo dos anos». É que, depois da construção feita com recurso a capitais públicos e privados, as empresas recebiam um renda mensal pelo uso do edifício, sempre de modo a que a empresa saísse beneficiada.
Entre os nove arguidos deste processo encontram-se ainda o agora vice-presidente da Câmara de Alcobaça, Hermínio Rodrigues, e o presidente da Câmara de Gouveia, Luís Tadeu Marques (à data dos factos vice-presidente).
As obras de todas as suspeitas, os arguidos e os crimes
No caso do município de Gouveia, a requalificação do mercado municipal e da zona envolvente nunca avançara por falta de financiamento bancário, mas o MP não hesitou em acusar Álvaro Amaro e Luís Tadeu Marques, dado que estes não avaliaram custos nem riscos e teriam a intenção de obter «benefícios para os próprios» e para a MRG. No Sabugal a obra também não avançou devido à sociedade de capitais mistos ter sido liquidada.
Mas o mesmo não pode dizer-se das PPP de Trancoso e de Alcobaça. Na primeira, a construção do campo da feira, do Centro Cultural de Vila Franca das Naves e a central de camionetas terá permitido à empresa de construção uma vantagem ilícita de pelo menos 3,6 milhões de euros. O encargo total foi de 23,6 milhões, ficando o município obrigado ao pagamento deste valor durante 24 anos. O então presidente da Câmara, Júlio Sarmento, defende o MP, terá recebido 560 mil euros por parte da construtora através da empresa de uma familiar.
Já em Alcobaça, o valor do alegado proveito ilegítimo da MRG foi de cerca de um milhão de euros, tendo 63 milhões de euros supostamente relativos às obras realizadas para receber durante os próximos 24 anos.
O MP de Coimbra decidiu por isso acusar no último mês Fernando Gouveia, responsável pela MRG e representado no processo pelo advogado Castanheira Neves, por quatro crimes de prevaricação de titular de cargo político, dois de participação económica em negócio, um de corrupção ativa e crime de branqueamento de capitais. Já Luís Tadeu e Álvaro Amaro foram acusados de um crime de prevaricação, Hermínio Rodrigues de prevaricação e participação económica e Júlio Sarmento do crime de prevaricação, do de participação económica, do de corrupção passiva e do de branqueamento de capitais. O MP pediu mesmo perda de mandato para os arguidos que ainda exercem funções públicas.
Negócio com empresa que está na sombra de Santos Silva
Mas as ligações à MRG também chamam à atenção em outros negócios, como o que envolveu a NOW XXI – uma empresa liderada por homens de confiança de Carlos Santos Silva e que tem sido selecionada em concursos realizados por muitas das entidades públicas que por norma trabalham com as empresas que estão ou estiveram ligadas à esfera do amigo de José Sócrates.
Segundo o SOL apurou, a NOW XXI desde que foi criada, em 2017, celebrou contratos com o setor público a rondar os 15 milhões de euros – quase metade em contratos com as Câmaras da Covilhã, Amadora, Seixal e Belmonte, a EPAL e a Santa Casa da Misericórdia da Covilhã. Num destes casos, o contrato foi celebrado não só com a NOW XXI, mas com um consórcio de que esta fez parte com a Fortunato Canhoto, que, por sua vez, integrava noutro caso um consórcio com a empresa Tanagra – sociedade que vai a jogo várias vezes com a NOW XXI e que em outros procedimentos aparece como concorrente.
Um dos negócios polémicos a envolver a NOW XXI e a Tanagra foi a obra do Teatro Municipal da Covilhã, adjudicada oficialmente à empresa MRG. Esta última empresa alegou depois dificuldades tendo a obra transitado para o consórcio NOW XXI e Tanagra. A obra, refira-se, consiste na transformação do teatro num centro de inovação cultural, um investimento financiado através do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano da Covilhã.
Ao SOL, António Fernandes desvalorizou há umas semanas qualquer problema nesta cessão de posição, garantindo que tudo foi feito ao abrigo da lei. Também o responsável da MRG explicou ao SOL que «a empresa ganhou o concurso, mas entrou em dificuldades financeiras e procurou uma empresa a quem pudesse fazer uma cessão de posição contratual, que é legal, está prevista no código».
Ontem, contactado pelo SOL novamente sobre todas as ligações da MRG, Rodolfo Gouveia afirmou não querer prestar quaisquer esclarecimentos por telefone, pedindo que os mesmos fossem feitos por email para a empresa, que não respondeu até à hora de fecho desta edição.
Ex-autarca de Seia condenado colaborou com a empresa
Com a atividade da MRG têm-se cruzado pessoas de relevo no campo autárquico ao longo dos últimos anos, como é o caso de Eduardo Brito (PS), ex-presidente da Câmara Municipal de Seia, que foi notícia em 2018 quando o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou em 2018 a condenação a dois anos e dois meses de prisão, com pena suspensa, pelo crime de prevaricação. Esse processo estava relacionado com a autorização dada a uma ex-secretária da Junta de Freguesia de Santa Marinha para que esta construísse uma casa num terreno, nessa freguesia, que se situava dentro do Parque Natural da Serra da Estrela – local onde é proibida a edificação por ser considerado Reserva de Zona Agrícola.
Contactado na última quinta-feira pelo SOL, o ex-autarca confirmou a sua passagem pela MRG, garantindo pouco saber sobre o que se passara na área da construção civil, mesmo no período em que lá esteve.
«Aqui há uns anos prestei lá trabalho, mas hoje não tenho nenhuma ligação», começou por dizer, referindo que já saíra há cinco ou seis anos. «Eu trabalhei na imobiliária, não tenho nada a ver com isso, não tenho nada a ver com obras. Prestei serviço na área agrícola», disse, explicando que nunca esteve ligado à MRG construções, mas sim para «lançar um projeto agroflorestal» e «preparar um projeto turístico na quinta do Castelão», que nunca chegou a ver a luz do dia. O ex-autarca contou ainda que o fez com uma «remuneração ínfima».