Mersey. Rio azul e vermelho

Chamam-lhe Friendly Derby e joga-se amanhã. Everton e Liverpool não têm, verdadeiramente, nada que os separe. Por isso o jogo é único!

Mersey: dizem que serviu de fronteira entre os velhos reinos de Mercia e de Northumbria. As suas margens são um daqueles pontos em que surge uma das rivalidade mais antigas do futebol em Inglaterra. E amanhã mesmo, neste regresso ansiado do futebol inglês, pelas 19 horas, em Goodison Park, Everton e Liverpool voltarão à peleja que tanto apaixona os seus adeptos.

De Goodison a Anfield não dista mais de uma milha. Ou um quilómetro e meio, se quiserem. Os gritos vindos de um estádio ecoam nas bancadas do outro. E, no entanto, o derby de Merseyside, toda a região que envolve o Mersey, é considerado o friendly derby. O derby dos amigos. Ou mesmo das famílias. Afinal, em Liverpool rara é a casa em que todos torcem pelo mesmo clube. Há sempre uns vermelhos infiltrados na casa de uns azuis, tal e qual como o contrário. O ódio não tem motivo para a existência.

Nos primeiros anos da sua fundação, entre 1878 e 1884, o Everton jogava em Anfield. Curioso. Com o seu toque de estranho. Comandado por um grupo de gente de classe alta, muitos deles ligados à política e muito mais ainda ligados aos negócios de propriedades, não tardaram a concordar que o Everton precisava de instalações mais dignas. Em 1892 compraram uns terrenos em Goodison Park, no lado oposto de Stanley Park. Ah! Mas as coisas não se limitaram a ser assim tão simples.

Por entre os gentlemen que dirigiam o clube, havia um grupo que não tinha, decididamente, a mania das grandezas dos seus colegas de direção. Mais pequeno-burgueses, tratados com relativa displicência, aproveitaram a mudança do quartel-general do Everton para se verem livres do próprio Everton. Mantiveram-se teimosa e orgulhosamente agarrados à glorious mud de Anfield. E fundaram outro clube: o Liverpool.

Se o Liverpool se pode considerar, com alguma propriedade, filho do Everton, ambos não tardaram a irmanar-se. Era habitual ver adeptos de um clube a assistirem aos jogos do o outro e até os folhetos de apresentação das partidas eram, muitas vezes, feitos em comum. E, ao contrário do que sucede um pouco por toda a Inglaterra – e por todo o mundo, já agora – não há verdadeiramente bases sociais, económicas, políticas ou religiosas que separem os fanáticos de Liverpool e Everton. Vêm todos da mesma textura que fez da cidade o porto mais importante do reino Unido.

219!

Dizem os especialistas em contabilidades que o derby de amanhã será o 219.º a contar para o campeonato. É do quilé!, diria o meu querido Assis Pacheco. Já agora, os moços que dão ao rol acrescentam que é o derby que se joga há mais anos consecutivamente: desde a época de 1962/63.

Quase, quase campeão, o Liverpool pode ir este domingo a Goodison Park como se se preparasse para ouvir uma prédica do Father McKenzie de Eleonor Rugby, não fosse esta a cidade dos Beatles. Será essa arrogância capaz de apepinar de tal forma os adeptos dos toffies que os levem a ser mais agressivos do que nunca? É pouco provável. Com o passar do tempo, e a despeito de o Liverpool estar há 30 anos sem conseguir ser campeão inglês, os apoiantes do Everton habituaram-se a ser considerados como o segundo clube da cidade. Pouco importa durante aquela hora e meia em que todos são iguais e vencer uma partida ganhar o sabor de vencer um campeonato. 

Mais uma vez, poder-se-ão ver casais de mão dada atravessando tranquilamente Gwladlys Street ou Bullens Road, um de cachecol azul e o outro de cachecol vermelho, no exemplo fraternal deste jogo tão diferente que nos faz recordar que há coisas mais importantes do que o futebol.

Mas o Friendly Derby não é assim tão amigável dentro das quatro linhas. Os tais coca-bichinhos das estatísticas vieram recentemente a descobrir que é o derby com mais cartões vermelhos da história de todos os derbies ingleses. Sinal que, canela contra canela, a coisa ferve. Ah! E apesar de toda a educação elevada à quintessência, geralmente não se leva muito a bem que um clube vá roubar jogadores a outro, coisa que já aconteceu por 30 vezes. Vendo bem nada de extremamente gravoso numa rivalidade que dura há 120 anos. A década de 1970 foi a única em que não se assistiu à habilidade de um trânsfuga. Dez anos de profunda calmaria, quase a rondar o tédio. Mas, deitando de novo as mãos aos papelinhos dos nossos oficiais diligentes das contas, eis que ficamos a saber que enquanto houve 20 jogadores a saltar de Goodison para Anfield, apenas dez fizeram a viagem inversa, atravessando Stanley Park. O nome mais sonante desta trintena, é o de Peter Beardsley, que Greame Souness resolveu despachar mal se sentou no banco dos reds como treinador. O último da lista foi um português, Abel Xavier, ele que sabe bem as características irrepetíveis do Merseyside Derby.

Mas se Everton e Liverpool estão unidos por uma fita citadina e familiar que os faz participantes de um clássico sem comparação, estão estão também ligados pela terrível tragédia de Hillsborough, em Sheffield, no dia 15 de Abril de 1989. Noventa e seis pessoas, assim mesmo, por extenso, perderam as vidas por via da incompetência e da negligência das autoridades policiais. O Everton nem fazia parte desse filme. Liverpool e Nottingham Forest lutavam por um lugar na final da Taça de Inglaterra. Preço da amizade. Dois autocarros cheios de crianças de Liverpool deslocaram-se a Sheffield. Era meninos vestidos de azul e de vermelho, com camisolas do Everton e do Liverpool. Muitos morreram. Mais ainda ficaram esmagados entre os 766 feridos que sobreviveram. Era como houvesse um só clube na cidade. O do sofrimento.