Se a narrativa oficial do Governo era a de que o aumento de casos em Lisboa e Vale do Tejo resultava, em parte, do aumento da testagem à covid-19, essa ideia caiu ontem por terra, com os especialistas a responderem de forma unânime de que há um aumento real de contágios, mesmo com maior recurso a testes. Esta foi uma das conclusões da 9ª reunião de epidemiologistas com todos os representantes dos principais órgãos de soberanias e partidos com assento parlamentar. A outra conclusão é a de que se pode estar a assistir a uma segunda onda em algumas zonas da Grande Lisboa.
No final do encontro, Marcelo Rebelo de Sousa passou a mensagem de que não há descontrolo na zona de Lisboa e Vale do Tejo, nem há pré-ruptura no Serviço Nacional de Saúde.
“Em momento algum se encontrou a ideia de descontrolo da epidemia a nível nacional e na região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT), quer na evolução do número de mortos, quer na pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS)”, declarou Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente da República deixou, contudo, o aviso para se obter um quadro global e cabal sobre as causas dos números: “ A dúvida que permanece é: já antes de ser testada essa população, havia a realidade da contaminação ou ela é posterior ao período de desconfinamento?”. A pergunta do Chefe de Estado não era inocente até porque não ficou completamente claro por que razão os números em Lisboa continuam a aumentar (ontem foram mais 302). Mas há um diagnóstico apontado pelo Chefe de Estado: “Uma população que trabalhou sempre, que não confinou muito, e que trabalhou durante o confinamento, como durante os desconfinamentos”. Este ponto de partida obrigará a um trabalho no terreno e medidas mais concretas e específicas. Marcelo apoia as medidas já anunciadas pelo Executivo e frisou ainda que Portugal tem usado “a metodologia da verdade” nos números.
“Não guardamos números por conveniência de ter cá a Champions”, argumentou o Chefe de Estado, sublinhando ainda que o Rt, a taxa de contágio da infeção da Covid-19, é de 1,08 a nível nacional. E Lisboa e Vale do Tejo até está ligeiramente abaixo de outras zonas do país.
Este foi o discurso oficial, mas lá dentro, na fase de perguntas, ficou claro que a Grande Lisboa pode estar a enfrentar uma segunda onda de contaminação da Covid-19. Marcelo não a mencionou, mas tanto o PSD como o CDS revelaram a opinião de especialistas dentro do encontro. A ideia de segunda onda foi deixada pelo epidemiologista Baltazar Nunes, na sequência de uma pergunta do presidente do Parlamento, Ferro Rodrigues. E como é possível diagnosticar uma segunda onda? Este cenário define-se por uma subida dos casos, seguida de uma descida, mantendo-se a mesma durante algum tempo, mas depois regista-se uma nova subida. E a Grande Lisboa apresenta este comportamento em termos epidemiológicos.
Um dos momentos mais delicados foi a tese do primeiro-ministro (segundo o qual haverá mais casos em Lisboa e Vale do Tejo porque também são feitos mais testes) a ser de alguma forma desmontada. O rácio do número de testes por casos positivos coloca Portugal no nono lugar da União Europeia, porque há um teste positivo por cada 28 realizados. Por exemplo, na Austrália fazem-se mil testes por cada teste positivo. Além disso, registou-se um aumento de internamentos e de internamentos em cuidados intensivos na zona da Grande Lisboa. No final, o primeiro-ministro mostrou-se algo impaciente para saber todas as causas de forma a poder agir de forma eficaz, tendo ainda sido colocadas perguntas para saber se as medidas já anunciadas pelo Governo eram as adequadas.
Os especialistas não conseguiram, contudo, apontar todas as causas para os números e mais: há 15 a 20 por cento de infeções na Grande Lisboa das quais não se consegue identificar as cadeias de transmissão.
A nível nacional há 65 surtos identificados, sendo que 53 estão na zona de Lisboa e Vale do Tejo. Além disso, estão identificados 24 focos em lares no país. Ao nível das causas ficou a ideia de que serão as condições habitacionais ou laborais a explicar os números, mais do que os chamados ajuntamentos ilegais de jovens. Neste âmbito, o discurso não foi de recriminação, mas de uma necessária pedagogia a esta faixa etária.
Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Universidade de Lisboa, deixou, no entanto, um aviso para a prevenção face a “eventos super-transmissores”. O alerta do especialista foi para muitas pessoas em espaços fechados (com tetos baixos e baixa humidade). Quem o ouviu interpretou a mensagem para a grande mobilidade dos portugueses nas férias com bares e discotecas abertas e os riscos que isso comporta.
Cá fora, o líder do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos, pediu um discurso político claro, sem equívocos e sem dualidade de critérios: “Agrupar-se para beber uma cerveja é ilegal, um festival como a festa do Avante já não. As concentrações estão limitadas e bem. A CGTP só para esta semana, numa altura em que estas restrições foram impostas, tem nove concentrações marcadas”. E deixou um apelo ao Governo para que “não tente encontrar explicações não plausíveis para uma realidade que é grave”, aludindo à situação em Lisboa e Vale do Tejo.
Ricardo Baptista Leite, do PSD, adiantou que “não se pode baixar a guarda” e que “o aumento do número de casos que estamos a verificar não é apenas e só o resultado do aumento da testagem”. Esta ideia também foi partilhada por Moisés Ferreira, do Bloco de Esquerda. Que apontou como causa as condições habitacionais, laborais e sociais.
Baptista Leite, por seu turno, garantiu que o PSD estará disponível para apoiar o Governo na alocação de mais meios para combater a pandemia. E mostrou a sua preocupação: “Nesta reunião, e de acordo com os técnicos de epidemiologia da DGS, a situação que estamos a viver, particularmente na região de Lisboa e Vale do Tejo, é a representação de uma segunda onda”, declarou aos jornalistas.
Mais uma vez, o deputado, que também é médico, pediu para se testarem os casos secundários da covid-19 e voltou a alertar para um maior controlo sanitário nos voos, sobretudo porque haverá um aumento razoável a partir de 1 ou 2 de julho.
Inês Sousa Real, líder parlamentar do PAN, manifestou a sua preocupação com a lotação dos hospitais “acima de 60 por cento” na Grande Lisboa, e o PEV lembrou que o “vírus não acabou”. André Ventura, do Chega, pediu mais eficácia do Governo a vender a imagem do país lá fora, até porque há grandes preocupações no setor do turismo.
Já Marcelo Rebelo de Sousa procurou alinhar o discurso e pedir soluções mais dirigidas como o marketing social, mais local e focado. A ideia agradou a todos. Por fim, quis deixar uma outra mensagem: “Portugal está no grupo dos cinco países que mais testes realizaram por cem mil habitantes, o que não é indiferente quando se compara o número de infetados”. O balanço desta estratégia e do discurso serão feitos, novamente, daqui a 15 dias.