Dir-se-á que a guerra contra o inimigo invisível que é o vírus que ameaça a nossa saúde é suficientemente premente para fazer olvidar perigos e horrores que só sucedem lá longe. Longe de nós, longe das nossas famílias e das nossas casas. No entanto, não pudemos deixar de assinalar a incoerência dos pressupostos de tal abordagem política: é que se há mantra que temos ouvido à exaustão nos últimos largos meses é o de que, no mundo global em que vivemos, não há fenómenos exclusivamente nacionais: as ameaças que surgem a nível local tendem com especial rapidez a adquirir contornos transfronteiriços (e transcontinentais).
Ora, com a ameaça do terrorismo islâmico radical (não precisamos já de repetir pela enésima vez que a referência que fazemos aqui é ao islamismo ideológico e não ao islamismo religioso – cremos que aqui até a dogmática do politicamente correto já cedeu à evidência), o diagnóstico é o mesmo: as suas fronteiras de possibilidades de expensão tendem, no mundo em que vivemos, a ser ilimitadas.
Donde, mesmo perante o atual contexto (que é o nosso) de luta contra a pandemia, lideres políticos, diplomáticos e de inteligência responsáveis não podem desvalorizar, muito menos ignorar, o perigo da presença crescente do Daesh em Cabo Delgado, no nosso querido país irmão que é Moçambique. A política externa portuguesa, na sua abordagem a esta situação de emergência, tem que se revelar especialmente cuidadosa, ativa (e não reativa) e com uma estratégia de ação clara.
Já sabemos que há uma insurreição em curso em Cabo Delgado, nordeste de Moçambique: esta é uma província moçambicana onde o lapso do tempo cronológico expõe, com nitidez, o paradoxo entre as potencialidades do futuro e as fragilidades do presente.
Com efeito, Cabo Delgado é atualmente uma das zonas economicamente mais desfavorecidas, com mais prenunciada exclusão social, onde o presente é suficientemente mau para muitos jovens percecionarem a maldade grotesca e assassina do terrorismo islâmico radical como a melhor escolha possível para si. E para os seus, da família biológica e da família social (a sua comunidade).
No entanto, convém frisar que Cabo Delgado é, ao mesmo tempo, uma zona reputada como tendo um futuro próspero, onde se antecipava um investimento significativo, quer das próprias autoridades moçambicanas, quer mesmo de entidades estrangeiras. A empresa francesa “TOTAL” tem, a título exemplificativo, um projeto de gasoduto de larga escala (o Mozambique LNG) em Cabo Delgado, que tem sofrido percalços vários com a insurreição terrorista aí em curso.
Ainda no mês passado, os trabalhadores da empresa foram atacados por terroristas, na zona de Mocímboa da Praia, tendo oito deles sido brutalmente assassinados às mãos destes bárbaros criminosos. Facto que motivou, aliás, a deslocação do Presidente da empresa, Arnaud Breillac, a Moçambique, aproveitando para se reunir com o Ministro dos Recursos Naturais e Energia, Max Tonela.
Segundo sabemos, o poder político central moçambicano encetou uma série de contactos não oficiais com empresas e mesmo autoridades políticas com interesse qualificado (direto e mesmo indireto) na segurança e estabilidade de Cabo Delgado, garantindo-lhes uma atuação rápida, eficiente e eficaz para derrotar a insurreição do terrorismo islâmico radical naquela região. Em troca, as autoridades moçambicanas terão pedido a garantia – a “palavra” – de multinacionais com peso a operar em Cabo Delgado que não abandonarão a região, nem desistirão dos projetos de investimento ora em execução, ora mesmo projetados em fase adiantada.
O objetivo das autoridades moçambicanas é tão lógico quanto evidente: fixar, através da exteriorização de vontade política e “goodwill” pública, agentes privados com capacidade de investimento e que garantem, ao final do dia, emprego aos moçambicanos residentes naquela zona. Uma eventual saída das multinacionais aí presentes ou a suspensão de investimentos resultaria num agravamento substancial do problema: o incremento do desemprego poderia gerar uma situação mais favorável para os terroristas, num duplo prisma.
Primeiro, tornaria as condições de recrutamento de locais para a causa terrorista mais propícias para a causa assassina terrorista; segundo, Cabo Delgado tornar-se-ia definitivamente o “hotspot” do terrorismo islâmico radical, ficando à mercê das ambições de dominação territorial deste rejuvenescido e anfíbio Daesh.
Para já, as empresas ficarão, atendendo até à riqueza e às potencialidades de desenvolvimento futuro de Cabo Delgado; no entanto, não se trata de promessa, nem tão pouco de garantia de permanência colaborante. Trata-se, isso sim, mais de expectativa prudente, esperando que o Governo de Moçambique cumpra a sua parte: os responsáveis máximos das empresas, e os seus Governos nacionais, esperam que o Governo de Moçambique, liderado pelo Presidente Filipe Nyusi (da FRELIMO), adote uma postura de ação mais resoluta nos próximos (imediatos) meses.
Segundo o que nos conta fonte muito próxima de uma das empresas operativas em Cabo Delgado, o risco de se ser altruísta, nesta região e nesta questão, é hoje muitíssimo elevado, superando quaisquer benefícios. Impõe-se, de imediato, que as autoridades moçambicanas mostrem que não há qualquer razão para a “comunidade internacional” duvidar da sua determinação e da sua vontade genuína em enfrentar – sem medo, sem rodeios e sem desordem operacional, sob a aparência de ordens difusamente emitidas– o vírus do terrorismo dentro do seu território.
É que, ao contrário do que tem sido divulgado entre nós, a situação no terreno, em Cabo Delgado, não se encontra melhor. Nem tão pouco se vislumbram melhorias ou vitórias contra a expansão do terrorismo bárbaro: segundo relato de alguém que está no terreno, com amplas responsabilidades no combate ao Daesh rejuvenescido e anfíbio, o cenário é mais devastador do que há dois ou três meses, a violência assassina dos “insurgentes” (substantivo utilizado para ocultar a verdadeira natureza dos “invasores”: terroristas!) não abranda – e os terroristas continuam a manter o domínio da situação.
Os terroristas têm – ainda hoje, numa tendência que parece não se inverter tão brevemente quanto seria desejável – o “leverage” operacional, fazendo com que as forças “contrainsurrecionais” partam, à partida, em desvantagem não despicienda. Facto que aliado às condições do terreno, às dificuldades operacionais relacionadas com o desconhecimento do teatro de guerra, inadequação do material bélico, ainda (ou et pour cause) que seja de elevada sofisticação e à falta de um plano estratégico claro para liquidar este Daesh anfíbio – torna o cenário de triunfo sobre o mal e a barbárie terrorista ainda muito nebuloso num horizonte temporal razoável.
Por hoje, cumpre deixarmos aqui uma nota derradeira. O conflito que se trava em Cabo Delgado não pode ser equiparado à irrupção de mais uma mera célula do Daesh em território da África Oriental, nem, tão pouco, poderá ser tratado em termos idênticos a um conflito entre interesses opostos de grupos (ou tribos) africanos, visando o controlo territorial de certa área. Em Cabo Delgado, poderemos ter o primeiro conflito (em território) africano não essencialmente africano das últimas décadas. Desenvolveremos na nossa próxima prosa sobre Cabo Delgado esta matéria.
Quanto a nós, somos do entendimento de que o conflito em Cabo Delgado não poderá ser resolvido com medidas cirúrgicas, apenas circunstanciais, nem com análises de episódios particulares, de eventos pontuais, perdendo-se a visão de conjunto.
Não se pode ficar esperando um “grande acontecimento trágico” (como a morte de doze jovens há muito pouco tempo ou a carnificina de populações ou a confirmação da exploração de mulheres para efeitos de angariação de receitas por via da prostituição…) para dedicarmos a nossa atenção ao crescimento perigoso do Daesh rejuvenescido e anfíbio em Cabo Delgado, Moçambique. Muito menos para apenas reagirmos, deixando-nos aprisionar pela estratégia dos terroristas.
Impõe-se, desde já, definir um plano musculado, bem pensado, estruturado, definindo as linhas essenciais da sua execução, de contraterrorismo. Plano que atenda às condições e limitações próprias do teatro de operações que é Cabo Delgado; urge recuperar o tempo perdido e anular a desvantagem em termos de conhecimento operacional que registamos face aos terroristas deste Daesh anfíbio (que, na verdade, tem sido identificado com o grupo Al-Shabaab al-Mujahideen, uma espécie de juventude partidária, ressalvando as diferenças abissais dos elementos em comparação, do Daesh).
E não esquecer que não se pode apartar o conhecimento do fenómeno (estudo e planeamento) da execução, da ação operacional (da batalhas que temos de travar até à vitória final). Isto é contraterrorismo. Isto é guerra contra um inimigo bárbaro – não é um exercício de especulação filosófica ou de lucubração académica.
Quanto a Portugal: o combate contra o Daesh anfíbio que opera em Cabo Delgado tem que ser uma prioridade da política externa. Por razões diplomáticas em sentido estrito, por razões económicas, por razões de segurança nacional e por razões afetivas.
Porventura os portugueses ainda não perceberam bem, mas o que está aqui em causa – entre muitas outras realidades, todas censuráveis e horripilantes – é a construção de um Califado em território de língua portuguesa.
Um Califado em país que tem uma relação privilegiada com Portugal.
Um Califado em país onde vivem tantos e tantos portugueses e onde ainda se sente o palpitar do coração português.
A nossa fonte, que está ou já esteve no terreno, ficou impressionada com o facto de um jovem que tem resistido às promessas tentatórias que os terroristas lhe têm oferecido envergar uma camisola de um famoso clube de futebol português (que, considerando que era vermelha, presumimos que seja do Sport Lisboa e Benfica).
Por isso, também se exige uma postura mais preocupada, inteligente e assertiva do nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros na sua abordagem ao problema, que é real e enorme, que se vive em Cabo Delgado.