por António Manuel de Paula Saraiva
Arquiteto Paisagista
Em 1967, os Beatles cantavam All You Need is Love: ‘Tudo o que precisas é de amor/Amor é tudo o que precisas’.
E o pastor norte-americano Martin Luther King, no célebre discurso I Have a Dream, proferido em 1963 em Washington, depois de denunciar as injustiças que os negros americanos sofriam, alertava as centenas de milhares de ouvintes: «Mas há algo que devo dizer ao meu povo: não procuremos satisfazer a nossa sede de liberdade bebendo do copo da amargura e do ódio. Devemos sempre conduzir a nossa luta no alto plano da dignidade e da disciplina. Não devemos permitir que o nosso protesto degenere em violência física. Uma e outra vez devemos subir às alturas majestosas de combater a força física com a força da alma.
E o pastor continuava: «Sonho que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-proprietários de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia até o estado do Mississípi, um estado sufocante com o calor da injustiça, sufocante com o calor da opressão, será transformado num oásis de liberdade e justiça.
Sonho que os meus quatro filhos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele mas pelo conteúdo de seu caráter.
Eu tenho um sonho!
Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com os seus racistas cruéis, com o seu governador de cujos lábios pingam as palavras ‘interposição’ e ‘anulação’ – um dia ali, no Alabama, meninos e meninas negras vão ser capazes de dar as mãos a meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos».
E em 1971, em Imagine, John Lennon rematava assim os seus sonhos: ‘Podem dizer que sou um sonhador/Mas não sou o único/ E espero que um dia você se junte a nós/E o mundo será só um.’
Isto é: os arautos de um ‘mundo novo’ denunciavam o ‘mundo velho’ e apelavam a um futuro onde imperasse a fraternidade.
Na atualidade, porém, tudo mudou – e os votos desses visionários parecem esquecidos. Já há anos que notamos (com desgosto) a agressividade dos comentários na net, tanto por parte de comentadores das ‘esquerdas’ como de comentadores das ‘direitas’. Uma raiva incontida parece fervilhar.
E o movimento ‘Black Lives Matter’ veio pôr essa raiva a nu. ‘All Lives Matter’ (slogan que certamente os antigos visionários teriam preferido) passou a ser um slogan das ‘direitas’, e a destruição de estátuas tornou-se vulgar. Ora, quem destrói estátuas decapitaria os próprios se estes não estivessem já no Além. E com isso se violaria um princípio fundamental do Direito: que ninguém pode ser punido por leis que não existiam à data em que os factos foram praticados.
E toda essa raiva esquece o proclamado logo no Artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: que os homens devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade: «Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade».
E essa raiva chegou ao ponto de se considerar não só adequado, como mesmo necessário, fazer calar os que pensam de maneira diferente, ‘castigando’ inclusivamente quem se escusa a fazer censura (caso do boicote ao Facebook). Também tal contraria o que postula o artigo 2.º dessa Declaração, e se ensinava nas escolas nas democracias ocidentais: que ninguém pode ser perseguido pelas suas ideias: «Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação».
O porquê desta alteração do estado de espírito de tantos homens e mulheres – a substituição da compreensão e amor pela raiva e destruição, o facto de as letras das músicas terem deixado de lado o humanismo e o romantismo para nelas proliferarem as asneirolas soezes – não sei. A tanto não chega a minha inteligência. Mas sei que o sangue traz sangue e o ódio traz ódio.
Na América começam a aparecer à luz do dia milícias armadas, de várias cores políticas, para apoiar ou impedir manifestações (com o seu já habitual cortejo de violências). É verdade que a América é um país de excessos, mas o vírus está espalhado pelo mundo. E quem quer um mundo novo deve pensar seriamente nestas questões – e não se deixar iludir pelo fumo das modas.