Não era a 23 de julho, o dia que ficou oficialmente registado como o do seu nascimento, que Amália Rodrigues gostava de comemorar o seu aniversário. Preferia o dia 1 — o seu verdadeiro dia de nascimento, no ano de 1920, «talvez por ser essa a altura do mês em que havia dinheiro para me comprarem os presentes». As comemorações do centenário daquela que ficou conhecida como «a voz de Portugal» começaram já nesse dia, mas prolongam-se até ao final do ano. Dia 23, Camané e Mário Laginha atuam no Museu do Fado, em Lisboa, num concerto com temas de Amália e Alain Oulman, que compôs apenas para a maior das vozes da música portuguesa do século XX — da sua autoria ficaram no repertório de Amália canções como Maria Lisboa, Madrugada de Alfama, As Águias, Naufrágio ou Gaivota. O concerto é transmitido em streaming nas redes sociais da Câmara Municipal de Lisboa. Até lá, recordamos Amália Rodrigues em dez momentos marcantes do seu percurso.
1. O início
Nascida numa família originária do Fundão, filha de um músico e sapateiro que para sustentar os quatro filhos foi à procura de melhor vida em Lisboa, Amália da Piedade Rebordão Rodrigues estudou apenas entre os 9 e os 12 anos. Depois disso tornou-se bordadeira. Apesar de tímida, cantou sempre. E foi aos 15 anos que, quando começou a trabalhar como vendedora de fruta no Cais da Rocha, a sua voz começou a chamar a atenção. Foi em 1936 que se juntou à Marcha Popular de Alcântara. O_ensaiador insistiu para que concorresse ao o título de Rainha do Fado do então Concurso da Primavera, que de resto Amália nunca disputou por as outras concorrentes se recusarem a participar contra ela. Foi também por esses anos que conheceu Francisco da Cruz, um guitarrista amador que viria a ser o seu primeiro marido e que a indicou para o Retiro da Severa, a mais conceituada casa de fados de Lisboa daquela época. Amália recusou inicialmente o convite, mas acabaria por começar a cantar nessa mesma cada em 1939.
2. A atuação em Espanha
Logo no ano seguinte, estreou-se no teatro de revista, no Teatro Maria Vitória, com a peça Ora Vai Tu. Foi o teatro que a levou a conhecer Frederico Valério, que compôs parte dos seus fados. E em 1943, depois de se divorciar por sua vontade e se tornar independente, viaja até Madrid para uma atuação na embaixada portuguesa a convite do então embaixador Pedro Teotónio Pereira. Em Espanha, conheceu cantoras de flamenco como Conchita Piquer, Impertio Argentina, Carmen Amaya, Niña de los Peines. Segundo Rui Vieira Nery num texto para o centenário de Amália Rodrigues, essas vozes «a influenciam de tal modo que se decide a experimentar ela própria as canções tradicionais espanholas, num primeiro passo para a constituição do que virá a ser o seu repertório assumidamente internacional das décadas seguintes». Antes de Amália, o fado raramente tinha deixado o território da língua portuguesa, com exceção para uma atuação sem grande repercussão de Ercília Costa, icónica fadista das décadas de 1920 a 40, na Feira Internacional de Nova Iorque, em 1939.
3. Os meses de Copacabana
Em setembro de 1944, o ano em que se juntou a Hermínia Silva na opereta Rosa Cantadeira, chegou ao Brasil com um contrato para atuar por quatro semanas no Casino de Copacabana, no Rio de Janeiro. Mas as quatro semanas transformaram-se em seis meses. O espetáculo foi depois repetido com acompanhamento de bailarinos e músicos.
4. Ai Mouraria
Foi no tempo que passaram no Rio de Janeiro justamente que Frederico Valério compôs Ai Mouraria, depois estreado no Teatro República. Por essa altura, no Brasil, gravou vários discos, que começaram a chegar a países para lá dos lusófonos. Foi por essa altura que começou a ser notada também nos EUA.
5. capas negras
Em criança, sonhava tornar-se um dia atriz como Sylvia Sidney ou Greta Garbo. O sonho quase se concretizou logo no início da década de 1940, pouco depois das primeiras experiências no teatro de revista, com um convite para interpretar a personagem de uma fadista escrita para si, de nome Amália, em O_Pátio das Cantigas, de António Lopes Ribeiro. Deu-se o facto de o maquilhador, António Vilar, achar que as suas sobrancelhas não resultariam em cinema e Amália perdeu o papel. A estreia no grande ecrã dar-se-ia apenas em 1947, no filme Capas Negras. Prova de que António Vilar talvez estivesse errado (ou de que não é um par de sobrancelhas que faz uma estrela) foram as multidões que se juntavam à porta das sessões em que a fadista estava presente, com a necessidade de recorrer a cordões policiais para lhe abrirem passagem.
6. Paris
Depois do sucesso nacional de Capas Negras, a participação no filme Les amants du Tage (Os Amantes do Tejo, de 1955), do franco-arménio Henri Verneuil, catapultou-a para o sucesso internacional. Nesse filme que acabaria por a levar a atuar no Olympia, em Paris, cantava Barco Negro. Disse a própria a Victor Pavão dos Santos, seu biógrafo: «O filme deu-me o pontapé de saída para França e a França deu-me o pontapé de saída para o mundo». Foi de facto o que aconteceu.
7. O mundo a seus pés
Em 1950, foi convidada a atuar nos espetáculos do Plano Marshall para o apoio à Europa no pós-guerra, nos quais participaram os mais renomados artistas de cada país. Atuou em Trieste, Berna, Paris e Dublin, onde cantora francesa Yvette Giraud conheceu a canção Coimbra, que ela própria popularizaria como Avril au Portugal. Em setembro de 1952, teria a sua estreia em Nova Iorque, no La Vie en Rose, onde atuou ao longo de 14 semanas. No ano seguinte estrear-se-ia na televisão americana, no programa de Eddie Fisher, na NBC.
8. o primeiro LP
Foi exatamente nos Estados Unidos que editou o seu primeiro LP, depois de uma série de discos gravados sempre em 78 rotações. Amalia Rodrigues Sings Fado From Portugal and Flamenco From Spain foi lançado em 1954 com o selo da Angel Records. O_disco foi editado em França e em Inglaterra mas nunca chegou a Portugal.
9. O estado novo e a censura
Apesar das frequentes associações ao regime de Salazar, Amália foi vendo vários dos seus fados censurados. Fado de Peniche, por exemplo, foi proibido por ser considerado um hino aos presos políticos. Barco Negro, cuja letra foi reescrita por David Mourão-Ferreira depois de ter sido censurada, foi regravado na versão original em 1978. Além de ter sido a responsável maior pela criação do género fado-canção, Amália inovou também na forma como levou ao fado, um género de origem popular, poemas dos grandes nomes da literatura portuguesa. Dos versos de Camões e D. Dinis às colaborações com nomes como David Mourão Ferreira, Pedro Homem de Mello, José Carlos Ary dos Santos, Alexandre O’Neill ou Manuel Alegre. Indissociável do seu nome é também o de Alain Oulman, compositor de vários dos seus grandes sucessos.
10. os últimos anos
Em 1997, a Valentim de Carvalho editou Segredo, um disco de gravações inéditas entre os anos de 1965 e 1975. No ano seguinte foi-lhe dedicada uma homenagem nacional na Expo’98 e em abril de 1999 fez a sua última viagem a Paris, para receber um prémio da Cinemateca Francesa. Morreria a 6 de outubro desse mesmo ano, ao início da manhã, na sua casa em Lisboa, depois de ter regressado da sua casa de férias no Alentejo. «Amália morre mas Amália está viva», disse o então Presidente da República Jorge Sampaio. «Será sempre uma grande figura da música portuguesa, da cultura portuguesa, do fado português e será com certeza aquela personalidade irreverente que toda uma carreira foi feita por ela ao serviço no fundo de Portugal e dos portugueses».