Após quase cinco dias de verdadeiras maratonas, o Conselho Europeu chegou finalmente a acordo em relação ao pacote financeiro para a retoma da economia europeia, com vista a responder à pandemia provocada pela covid-19. Ao todo, vai ser atribuído 1,82 biliões de euros e, deste bolo, Portugal vai contar com 45 mil milhões de euros nos próximos sete anos – dos quais 15,3 mil milhões serão em transferências a fundo perdido e 29,8 mil milhões de euros atribuídos em subsídios do orçamento da UE a longo prazo, 2021-2027. Mas, se para o presidente do Conselho Europeu o acordo dos 27 é um «sinal de confiança, robustez e solidez», para o Parlamento Europeu a visão é outra. E ameaça mesmo chumbar o próximo orçamento comunitário se os líderes europeus não fizerem alterações ao acordo para que sejam atribuídas mais verbas para os programas ligados à saúde, investigação e investimento.
E nem os argumentos de Charles Michel parecem convencer os eurodeputados. «Este momento é central na história europeia. Agimos rapidamente e com urgência. Em menos de dois meses, conseguimos um acordo de mais de 1,8 biliões de euros, e esta resposta é maciça comparada com a dimensão da economia. A resposta da Europa é superior à dos Estados Unidos ou da China», disse.
Também a presidente da Comissão Europeia admitiu que o orçamento plurianual tem cortes que são «uma pílula difícil de engolir». Ursula von der Leyen começou por dizer que o acordo do Conselho Europeu «trouxe a luz no fundo do túnel, mas com a luz, vem também sombra e, neste caso, a sombra tem a forma de um orçamento a longo prazo muito magro». E deu como exemplo os cortes no financiamento de programas europeus como o Horizonte, de investigação, EUHealth, de saúde, e InvestEU, de investimento, sublinhando que todos eles «mais que compensam o seu custo».
E Portugal?
Para António Costa, esta é uma «oportunidade que o país não pode desperdiçar». O valor que Portugal vai receber representa um aumento de 37% face ao anterior Quadro Financeiro Plurianual 2014-2020 – e no qual não estava incluído o Fundo de Recuperação agora criado por causa da pandemia –, em que Portugal dispunha de 32,7 mil milhões de euros. E pretende corresponder à tal ‘bazuca’ a que o primeiro-ministro se referiu em abril. Feitas as contas, vão chegar ao país diariamente cerca de 18 milhões de euros, mas que exigem a apresentação de um plano de recuperação que terá de chegar a Bruxelas em outubro. «A resposta à crise e a aplicação destes recursos exigem, nos termos que estão acordados, a apresentação por Portugal de um plano de recuperação, cujo primeiro esboço deve ser apresentado à Comissão Europeia em outubro deste ano», disse o ministro Siza Vieira, lembrando que o acordo é «absolutamente inédito».
Uma verba que não convence os economistas contactados pelo SOL, que também colocam dúvidas em relação à forma como vai ser aplicada e quem a vai controlar (ver páginas 14 a 17). Preocupações que também têm eco junto dos analistas ouvidos pelo SOL. «Infelizmente, os fundos podem parecer ambiciosos, mas a situação económica portuguesa é dramática», diz Eduardo Silva (da XTB), que dá como exemplo o negócio da TAP: «É uma grande incógnita mas, mesmo nesta fase, já são 1,2 mil milhões e sabemos que será muito mais. Mesmo que o valor seja ambicioso, as circunstâncias são igualmente desafiadoras e ainda não se conhece a real dimensão do problema».
E as preocupações ganham novos contornos em relação à forma como esta verba será aplicada. «Ainda não está absolutamente claro, mas quase seguramente haverá supervisão externa sobre a forma como o fundo, que resultará de empréstimos contraídos pela UE, será utilizado pelos países beneficiários. Em breve, iniciar-se-ão as discussões técnicas que definirão estes mecanismos, antecipando-se, desde já, alguma fricção entre os países do Sul, que querem evitar a humilhação de uma nova troika, e os do Norte, que, vendo-se no papel de ‘fiadores’, pretenderão manter algum controlo sobre a aplicação dos capitais», lembra Ricardo Evangelista (da ActivTrades).
Também para Eduardo Silva essa é uma questão pode levantar problemas. «O controlo passa logo pela ‘toxicidade’ dos negócios aprovados. Basta olhar para o caso do Novo Banco, que todos os anos apresenta a conta para o estado pagar. Mas isto só acontece porque foi assim previsto inicialmente. Vão começar a ser divulgados os valores de ajustes diretos e demais relativos ao período de confinamento, enquanto os fundos fluírem penso que vai ser disfarçar os buracos, mas se o passado servir de exemplo ,entre o que se vai gastar para tapar buracos, o que sobra para investir será realmente pouco», alerta.
Para já, António Costa admitiu que 300 milhões de euros terão como destino apoiar a região do Algarve. Um valor que foi considerado «manifestamente insuficiente face à dimensão dos problemas que a região atravessa», disse o presidente da Associação de Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA), acrescentando que representa menos de 0,7% do total aprovado para o país e, como tal, «não é suficiente para os investimentos públicos que são necessários fazer e para apoiar as empresas».
E onde investir?
Da indústria ao digital, da ferrovia à aviação, passando pelo mar, o sol e os minerais. Estas são as principais linhas mestras do programa apresentado por António Costa Silva na sua visão estratégica para o país para a próxima década. Valores a investir não estão incluídos no programa, como referiu o ‘paraministro’, que remete para o Governo a responsabilidade de definição de prioridades e de custos.
«Sou um homem de números. Fiz as contas de tudo. E tenho as minhas contas todas, mas não me vou meter aí. Isso é da exclusiva competência do Governo. É o Governo que tem de decidir, decidir as prioridades, fazer o programa de recuperação», afirmou.
Uma das políticas de bandeira do consultor é a aposta nas infraestruturas, assente no TGV e num novo aeroporto. Para Costa Silva não há dúvidas: é preciso investir numa infraestrutura que ao longo dos anos tem causado polémica e sofrido inúmeros avanços e recuos: a alta velocidade. «Temos de ter uma ligação de alta velocidade entre Lisboa e Porto por uma razão muito simples: os voos até 600 km ou até mil km vão ser proibidos», disse, lembrando que «os países que não tiverem, sobretudo nas suas duas grandes áreas metropolitanas, uma ligação eficaz e rápida entre elas vão sofrer em termos de futuro».
O mesmo argumento é usado para a necessidade do novo aeroporto na zona da Grande de Lisboa, não mencionando, no entanto, a localização. «É indispensável construirmos um grande aeroporto para a zona metropolitana de Lisboa e é indispensável assegurarmos as ligações aéreas eficazes que a região norte precisa. Por uma razão muito simples: todos os estudos da economia portuguesa revelam que as ligações aéreas são um dos fatores cruciais que condiciona a competitividade da economia portuguesa».
Ao mesmo tempo, defende que o plano de recuperação deverá partir «daquilo que existe» no país, mas fazendo uma transformação em várias áreas. «Temos de ter um plano de recuperação que parte daquilo que existe. Mas temos de fazer a transformação daquilo que existe. A clusterização não é suficiente, temos de olhar para as cadeias de valor, temos de olhar para onde nos posicionamos e decidir o que temos de desenvolver para ser mais competitivos», afirmou.
O consultor defende um programa de investimento para transformar Portugal numa «fábrica da Europa» e que leve o país a organizar a investigação, a apostar na transferência de tecnologia e em criar condições para desenvolver e consolidar empresas de alta tecnologia. Ao mesmo tempo, defende que sejam ajudadas as empresas rentáveis. «Penso que é fulcral manter estas empresas à tona, porque elas são rentáveis. Foram atingidas duramente pela pandemia, mas se recuperarem são eixos fundamentais para o desenvolvimento da nossa economia», defende.
‘Piores crises da história’
O paraministro traça também um cenário macroeconómico para o país ao admitir Portugal «pode vir a enfrentar uma das piores crises da sua história» ao apontar para uma queda do Produto Interno Bruto (PIB) para os 12% já este ano. Um valor superior ao que foi admitido recentemente pelo Ministro das Finanças e que aponta para 7%. «Dada a incerteza atual não vamos já atualizar as nossas projeções macroeconómicas, que oportunamente faremos atualizar em função da evolução económi ca», já veio admitir João Leão.
Para tentar minimizar esta situação, Costa Silva propõe a criação «de um fundo, de base pública, de capital e quase capital, aberto a fundos privados, para operações preferencialmente em coinvestimento, dirigido a empresas com orientação exportadora e potencialidades de exploração de escala». Ou seja, passa pela criação de um fundo soberano para cumprir este objetivo.
O responsável apela ainda à «criação de um banco promocional [tipo Banco do Fomento], definindo uma matriz clara da operação em torno dos segmentos de empresas com maior capacidade de arrastamento, e não numa lógica de assunção das operações de risco que o sistema financeiro convencional não está disponível para aceitar».