Domingo, 2 de fevereiro de 2020. Por volta das 16 horas, sou informado telefonicamente pela zelosa e dedicada enfermeira Catarina do estado de saúde da Sra. D. Emília, internada há algum tempo num hospital de Lisboa, no âmbito dos cuidados continuados.
O quadro clínico tinha-se agravado nas últimas horas e tudo apontava para uma intervenção cirúrgica. Sem perder tempo, alertei o cirurgião, também ele de sobreaviso, do evoluir da situação. Era preciso avançar e quanto antes, não olhando à idade avançada da doente nem aos riscos que era preciso correr. A única sobrinha estava fora nesse fim de semana e já não conseguia chegar a tempo das grandes decisões.
O cirurgião dirige-se apressadamente para o hospital, pedindo que se proceda à transferência da doente para a unidade onde iria ser intervencionada. Não era possível esperar. Pelo telemóvel, avisei a sobrinha do plano em marcha, enquanto ela tentava antecipar a viagem de regresso à capital. Dirigi-me a correr para o hospital e, por não haver mais ninguém que o pudesse fazer, entrei na ambulância dos bombeiros, lado a lado com a doente, ouvindo lá fora o toque da sirene que indicava a urgência da situação.
A sra. D. Emília estava pálida, fria, nauseada e com fortes dores abdominais. Chegados ao nosso destino, já com o cirurgião no bloco operatório à espera de poder iniciar a intervenção, era necessário primeiro proceder às formalidades normais – como a inscrição, registos e demais obrigações administrativas –, não se podendo avançar sem que essas tarefas fossem todas cumpridas.
Como médico, sabia perfeitamente que não se podia perder tempo. Porém, ao chegar ao guiché, e depois de explicar o que se passava e de me ter identificado, foi-me dito pela administrativa: «Espere a sua vez, não o vou passar à frente. Todas estas pessoas são tão urgentes como o senhor». Respondi então: «Por favor, tome atenção: sou médico e sei do que estou a falar. A doente que vim acompanhar está em oclusão intestinal e aguarda cirurgia. É um caso urgente e tem de ser prioritário». A funcionária não me deu atenção nenhuma e voltou a dizer: «Tire uma senha e espere, já lhe disse!».
Tirei uma senha e pela numeração verifiquei que tinha quase cinquenta pessoas à minha frente. Sem poder fazer nada, voltei à funcionária e preveni-a de que a iria responsabilizar pelas consequências da demora, caso a doente viesse a sofrer com estes atrasos administrativos. Então, apareceu uma enfermeira (com idade de ser minha filha) e o que teve para dizer foi só «calma», repetindo essa palavra umas poucas de vezes.
Fiz-lhe ver (sempre com bons modos), como profissional, que era preciso distinguir doentes em situação de urgência, em que a vida está em perigo, com consultas ‘urgentes’ mas onde não se corre perigo de vida. E que era lamentável não haver um outro ‘canal administrativo’ exclusivo para doentes emergentes, ainda para mais num hospital privado!
A muito custo, e depois de tanto falar, lá consegui resolver o assunto e desbloquear a barreira burocrática. Do outro lado, no S.O., a doente, já com uma sonda naso-gástrica, subia até ao bloco. Missão cumprida. Já perto da meia-noite, recebo em minha casa um telefonema do cirurgião: operação bem-sucedida e doente já nos cuidados intensivos. Recompensa feliz!
Este caso, que fala por si, transporta consigo uns tantos recados. O primeiro é para aqueles que defendem que só o privado é bom, e melhor do que o serviço estatal. Nem sempre é verdade. O segundo é para mim: para sentir na pele o que os pobres dos doentes passam nestes serviços de urgência. Dou a mão à palmatória: é mau demais. O terceiro é para os privados, que querem assumir-se como alternativa ao Serviço Nacional de Saúde, oferecendo serviços de qualidade – mas, a funcionarem assim, não são alternativa nenhuma e não irão longe. O último recado é para os doentes, a quem se pede bom senso e colaboração, devendo evitar as idas aos serviços de urgência hospitalar por tudo e por nada, com situações de meras consultas, que deveriam ter atendimento em toda a parte menos naqueles locais. É humanamente impossível fazer melhor quando dezenas e dezenas de pessoas, por não terem resposta nos centros de saúde, sobrecarregam serviços que se destinam às verdadeiras emergências.
Um pouco pelo que aqui descrevo, deixo apenas uma pergunta à consideração de todos: será isto que nós queremos?
P.S. – O nome da doente está trocado, visto tratar-se de um caso da vida real. A identificação dos hospitais foi omitida propositadamente. O nome da enfermeira é verdadeiro, a quem deixo uma palavra de louvor.