Grande Prémio de Portugal, Monsanto-1959: num Cooper-Maserati T51, Mário de Araújo Cabral fazia história tornando-se o primeiro português a participar em provas de Fórmula 1. O britânico Stirling Moss foi o vencedor da corrida e o piloto portuense fechou o top-10. Em 2012, numa entrevista ao jornal i recordou a sua estreia e lembrou como o resultado até podia ter sido ligeiramente melhor. «Acabei em 10.º lugar mas há uma história engraçada. Nas três últimas voltas, o Terry Brooks vem coladinho a mim. O meu carro já estava a falhar por todos os lados mas o dele falhava ainda mais. Ainda assim, fiz-lhe sinal para me passar porque julgava que ele estava à minha frente e ia dar-me uma volta de avanço. Ninguém das boxes dizia nada, estavam lá sentadinhos a ver a corrida, e eu pensava que o Ferrari do Brooks ia dobrar-me. Qual não é o meu espanto quando percebo no final da corrida que caí de 9.º para 10.º, através do Terry Brooks. Veio ter comigo a dizer-me ‘Mario, you’re fantastic, thank you’ e eu feito parvo a olhar para ele como quem diz ‘mas tu queres ver’. Ficámos sempre amigos a partir daí [risos]», contou, aos 78 anos.
Após esta prova, Nicha Cabral, como ficaria conhecido, deixava para sempre o seu nome inscrito na história do desporto automóvel português. Porém, as pistas nem sempre fizeram parte da vida do antigo piloto, nascido em Cedofeita, no Porto, em 1934. Filho de uma família abastada ligada à indústria têxtil, Nicha Cabral deu os primeiros passos como atleta na ginástica. Contudo, em 1952 uma fractura num pé impediu-o de se tornar ginasta olímpico, conduzindo-o para novas aventuras. Além da corrida em Monsanto, Nicha Cabral participou em mais quatro provas de F1, uma delas também em Portugal, no ano seguinte, desta vez no circuito da Boavista. Correu pela última vez na F1 no Grade Prémio de Itália, em Monza-1964.
O ex-automobilista português participou também em quatro provas extra-campeonato, onde a sua melhor classificação foi um quarto lugar, no GP de Pau, em 1961.
A carreira do piloto portuense fica, de resto, marcada pelo grave acidente em França, no Grande Prémio de Rouen em Fórmula 2, em 1965, quando seguia a 200 quilómetros/hora. «Não morri por milagre. Despistei-me, dei duas voltas e fui parar à mata. O carro embateu numa árvore, partiu-se em dois e eu aterrei numa zona de silvas, que me ampararam o golpe. Saí todo picado, com 17/18 fracturas. Estive seis meses num hospital em Rouen, onde uma enfermeira salvou-me da morte com embolia pulmonar. Ela estava sempre ao meu lado e tinha a injeção pronta. Salvou-me a vida às duas e quatro da manhã. Só voltei a correr em 1967 ou 1968, em Monsanto. Ganhei a corrida com um Porsche Carrera. Aí, entusiasmei-me outra vez. Fórmula 1 nunca mais, por falta de verbas também», lembrou, durante a mesma entrevista ao i, há 8 anos.
Nicha Cabral correu ao lado de alguns dos nomes mais conhecidos de então, como Moss ou Jack Brabham. Foi, aliás, com o piloto australiano que protagonizou um episódio caricato também durante a sua primeira corrida na F1. «Ele [Jack Brabham] estava a discutir o primeiro lugar com o Moss. Íamos na autoestrada a entrar em Monsanto, eu olhei por um dos retrovisores e vi o nariz do carro dele a aproximar-se. Pensei ‘olha, vai ultrapassar-me nesta recta’ e cheguei-me à direita para ele ter espaço à esquerda. O que é que ele pensou? O contrário! Quando ele percebeu que eu já não ia para a esquerda, era tarde de mais. Sem espaço para entrar por fora naquela curva, foi de frente e bateu no vértice do triângulo. Ele ficou ali e eu continuei», explicou ao i, antes de revelar a conversa que teve com o automobilista australiano após a corrida ter terminado. «Nas boxes, veio falar comigo. Estava furioso, a protestar. ‘Why don’t you break sooner?’ perguntou-me ele. ‘A culpa foi tua, eu não saí da minha trajectória. E mais, dei-te o espaço para avançares à vontade. Ninguém tem culpa que tu penses mal’», disse. E rematou: «Ele nunca mais se esqueceu de mim. Anos depois, escreveu as suas memórias: ‘Não acabei o GP Portugal-59 por causa de um ‘very dangerous local boy’ [risos]».
Durante essas recordações, Nicha Cabral aproveitou para fazer uma espécie de auto-avaliação às suas participações, frisando as grandes diferenças na modalidade ao longo de mais de cinco décadas: «Não levava aquilo a sério. A Fórmula 1 não era o circo de agora e não tinha um manager. Tinha uns amigos e tal. Mas gostei da aventura».
Nicha Cabral manteve-se em atividade até 1975, em carros de Sport e Turismo, tendo participado várias vezes nas 24 Horas de Le Mans, e ainda realizou duas provas de Fórmula 2, no Autódromo do Estoril. Em 1973, no Grande Prémio de Portugal, em Fórmula 2, ficou em oitavo lugar, ao volante de um March, e no circuito de Benguela, em Angola, alcançou a última vitória da sua carreira. A última prova em que marcou presença foi nas 4 Horas de Jarama, em Espanha.
Após terminar a carreira nas pistas, o portuense foi convidado para dinamizar a escola de Fórmula Ford, que formou vários pilotos, entre os quais António Simões, Manuel Gião, Pedro Lamy, Diogo Castro Santos e Pedro Matos Chaves.
Nicha Cabral despediu-se aos 86 anos, no Hospital de São José, em Lisboa, onde estava internado, vítima de doença prolongada.
Paixão pelas artes
Conhecido por ser um bon vivant, Nicha Cabral, amigo de Paul Newman, de Sacha Distel, de Paulo Autran ou Tônia Carrero, chegou a ambicionar uma carreira de ator. Ainda pelo mundo artístico, destacou-se após ter terminado com 20 valores o curso de violino do Conservatório Nacional de Música. Apaixonado pelas artes desde jovem, tornou-se entretanto coproprietário de galerias de arte e um antiquário de referência.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentou a morte do antigo piloto, lembrando-o como um «português com talentos e um percurso singulares». «Foi o primeiro português a participar num Grande Prémio de Fórmula 1, no Circuito de Monsanto, em Lisboa, em 1959», afirmou, destacando a «longa carreira ligada ao desporto automóvel em diversas categorias, como piloto, como instrutor e como inspirador».
Também João Paulo Rebelo, secretário de Estado da Juventude e do Desporto, reagiu à notícia do falecimento do antigo piloto através das redes sociais: «Agora que Portugal será novamente o anfitrião da F1, recebemos a triste notícia do desaparecimento de Mário A. Cabral. Carinhosamente tratado por Nicha e prémio carreira da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK), foi o primeiro português a conduzir um F1. À família e companheiros automobilistas, sentidas condolências».
Já o piloto português Tiago Monteiro lembrou Nicha Cabral como uma «excelente pessoa, sempre com histórias para contar». «É uma perda para o país. O Nicha Cabral era uma excelente pessoa, bom conversador, sempre com histórias para contar. Foi um pioneiro e isso ninguém lhe tira. Numa altura em que a Fórmula 1 não era o que é hoje, era à base de potência e coragem e não de tecnologia como agora», disse o piloto portuense de 44 anos, que correu no Mundial de F1 em 2005 e 2006.
À TSF, Adelino Dinis, biógrafo do piloto, também recordou Nicha Cabral como «uma pessoa encantadora, muito conversador». «Foi um pioneiro ao ser o primeiro piloto português a tentar fazer uma carreira internacional. Dizia-me muitas vezes que preferia ficar em último numa corrida onde estivessem os melhores do mundo do que vencer no seu bairro, ou seja, em Portugal», assegurou. Também a Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK) reagiu através das redes. «Foi com profundo pesar que tomámos conhecimento do falecimento de Nicha Cabral, o primeiro piloto português na Fórmula 1 e uma figura incontornável do automobilismo português», podia ler-se.
Por sua vez, a Federação Angolana dos Desportos Motorizados (FADM) considerou o ex-piloto portuense figura maior do automobilismo, «sobretudo pela imagem e promoção da modalidade».
«O seu nome faz parte dos anais do automobilismo angolano, não apenas como campeão, mas sobretudo pela imagem e promoção da modalidade, com vitórias retumbantes que marcaram a fase mais gloriosa da sua vida», escreveu a FADM.
Nicha Cabral participou em várias competições de automobilismo em Angola, com destaque para as Seis Horas de Nova Lisboa (atual Huambo), que venceu ao volante do BMW 2800CS.
Já a fazer equipa com o compatriota António Peixinho, correu ainda as 3 Horas de Luanda e depois as 6 Horas de Nova Lisboa em 1973.
Ainda em solo angolano, participou nas corridas Sá da Bandeira (Lubango), Novo Redondo (Sumbe) e Benguela, onde, como já foi referido, alcançou a sua última vitória da carreira.
A Fórmula 1 regressa este ano a Portugal, 24 anos depois de o Estoril ter sido palco do último Grande Prémio de Portugal (1996).
Pela primeira vez a categoria rainha do automobilismo vai passar pelo Sul do país, neste caso pelo Autódromo Internacional do Algarve (AIA), em Portimão, com a etapa do Mundial prevista para o fim de semana de 23 a 25 de outubro.