«O cinema serve simplesmente como tela sobre a qual refletimos juntos. O importante é que o cinema se torne olho, espelho e consciência», dizia Osmane Sembène, nome fundamental na história do cinema africano, cinema que cedo aprendeu a olhar a câmara como arma, arma política. «Para Sembène o cinema sempre foi uma arma política, mais forte que a sua prolífica obra escrita, que não chegava a uma população nacional maioritariamente iletrada», nas palavras de Miguel Valverde, codiretor do IndieLisboa, na apresentação da retrospetiva que o festival dedica este ano ao cineasta senegalês que lutou por «expor em imagens a brutalidade das relações coloniais: o cinema como um instrumento de descolonização e revolução».
A prova foram as ações de distribuição de panfletos com descrições das cenas cortadas em Ceddo, em que uma mulher matava um líder islâmico. Conta-se que os distribuía o próprio, às portas dos cinemas. A esse filme de 1977 regressa este Indie em duas sessões na Cinemateca que exibe mais uma dúzia de obras suas, entre as quais Camp de Thiaroye, em 1988 vencedor do Prémio Especial do Júri em Veneza. Considerado a sua obra-prima, é um grito contra as injustiças do colonialismo, ao contar a história do massacre de soldados senegaleses levado a cabo pelos franceses depois de se revoltarem no regresso a casa, após a II Guerra Mundial.
À 17.ª edição, num tempo em que o mundo foi (e continua) forçado a parar para se olhar a si próprio, no mesmo em que por cidades americanas e europeias se saiu ao mundo para, em nome e memória de George Floyd, gritar que as vidas negras importam (meses depois, em Moscavide, era assassinado em plena luz do dia por um ex-combatente da guerra colonial o ator negro Bruno Candé), o IndieLisboa apresenta-se com uma programação marcada por um forte pendor político.
Mais do que isso, neste IndieLisboa, que arranca a 25 de agosto no Cinema São Jorge, em Lisboa, com La Femme de Mon Frère, estreia na realização de longa-metragem da atriz e realizadora Monia Chokri, rosto habitual do cinema de Xavier Dolan, e se prolonga até 5 de setembro, o lugar do meio é entregue ao cinema negro, presente na programação para lá das retrospetivas e da realizadora em foco na secção Silvestre: a franco-senegalesa Mati Diop, cujo olhar se tem dividido entre África (Atlantiques, Mille Soleils e Atlantique, Grande Prémio do Júri na última edição de Cannes) e esta Europa que, importa continuar a sublinhar, é também sua (Snow Canon, Big in Vietnam e Liberian Boy).
Para o cinema negro que marca a programação deste Indie, as portas de entrada são várias. Das questões coloniais, do cinema africano das décadas de 1960 a 80 que nos traz esta edição do festival com a retrospetiva que dedica a Ousmane Sembène, a uma parte importante da história da luta do movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, através de documentários como Angela – Portrait of a Revolutionary (1971), de Yolande du Luart, ou Eldrige Cleaver, Black Panther (1970), de William Klein – ou as questões raciais na Europa da década de 1970, através de obras como Mes Voisins ou Soleil Ô, dois filmes do mauritano Med Hondo exibidos em sessão única a 28 de agosto na Cinemateca, ambas sobre a luta dos imigrantes africanos na Paris acabada de sair do Maio de 68. Para Soleil Ô, vencedor do Leopardode Ouro em Locarno nesse ano, Med Hondo filmou ao longo de quatro anos e com um reduzidíssimo orçamento, a história de um imigrante mauritano em Paris perante a humilhação e a indiferença de uma sociedade racista e classista numa «sátira do absurdo» influenciada pelo cinéma vérité. Todos eles filmes de integrados no ciclo dedicado aos 50 anos da secção Forum da Berlinale, comemorados este ano, que pela mão do Indie na Cinemateca Portuguesa será agora possível ver em Lisboa. Filmes estreados no ano em que o Festival de Cinema de Berlim fundava essa secção que procurava dar eco às lutas e ás convulsões da época, fossem anti-coloniais ou pelos direitos das mulheres, da comunidade gay (o incontornável Nicht der Homosexuelle ist pervers, sondern die Situation, in der er lebt, de Rosa von Praunheim, integra também a programação) ou direitos civis.
É por essa porta que nos chegam também obras como Monangambeee, produção argelina de 1968 em que a cineasta Sarah Maldoror (1929-2020), uma das vozes que mais uso fizeram do cinema como arma política pela libertação africana, denúncia as atrocidades cometidas pelo colonialismo português em Angola.
Do Senegal à Reboleira
O Senegal de Sembène não se fica pela obra do cineasta a que se regressa na Cinemateca, nem pelo foco dedicado a Diop, também ela herdeira do seu cinema. Ousmane é também o nome de um dos irmãos que protagonizam Baamum Nafi (O Pai de Nafi, em português), que Mamadou Dia rodou em Matal, a sua cidade natal, no Senegal. À Competição Internacional do Indie, esta que é a sua primeira longa-metragem chega já duplamente premiada em Locarno.
Em espelho com os retratos da comunidade mauritana na Paris do início da década de 1970 de Med Hondo poderemos olhar, nos dias de hoje, o filme que também a Locarno levou o luso-suíço Basil da Cunha: O Fim do Mundo. A história não é a de um trabalhador migrante, é a de Spira, um jovem de 18 anos que regressa à Reboleira depois de oito anos num centro de detenção juvenil. O filme integra a Competição Nacional, que trará também pela primeira vez a Lisboa a estreia na longa-metragem de Catarina Vasconcelos, premiada na nova secção Encontros do Festival de Cinema Berlim, A Metamorfose dos Pássaros. Um ensaio poético que parte da história familiar da realizadora e da figura de Beatriz, sua avó que, com o marido no mar, tratou de seis filhos, para pensar questões como a morte ou a família.