"Vocês têm munições suficientes?", questionou Vicki McKenna, uma popular apresentadora de rádio do Wiscosin, esta quarta-feira. Nesse mesmo estado, no dia anterior, um rapaz de 17 anos, Kyle Rittenhouse, admirador da polícia e de Donald Trump, fora armado com uma espingarda semi-automática AR-15 para as ruas caóticas de Kenosha. Foi filmado a disparar sobre três pessoas que protestavam contra a violência policial e o racismo. Duas delas morreram. "Estão prontos para defender a vossa propriedade, o vosso povo, contra a violência iminente desencadeada por pessoas cujo objetivo final é a total destruição do nosso modo de vida?", continuou McKenna.
Rittenhouse, cadete de um programa de juventude da polícia, viajou do Illinois a Kenosha de propósito para os protestos. Chegou a ser entrevistado poucas horas antes de abrir fogo. "As pessoas estão a ser magoadas, o nosso trabalho é proteger estes negócios", disse ao Daily Caller, à frente de uma loja queimada.
Rittenhouse não era único cidadão armado nas ruas de Kenosha. Num país com uma enorme rede de milícias fortemente armadas, tendencialmente brancas e de direita, muitos responderam aos apelos da autoproclamada Guarda de Kenosha, em posts no Facebook, que acabariam por ser removidos. Não foi a primeira, nem a segunda vez, que um grupo deste género se mobilizou contra motins ou protestos anti-racistas – até já surgem milícias negras e de esquerda em resposta. Parecia uma questão de tempo até uma tragédia acontecer.
"Não sei o que vai acontecer a seguir. Mas Kyle Rittenhouse já é um herói para muitos patriotas", salienta ao SOL o jornalista John Temple, autor do livro Up in Arms, de 2019, sobre o crescimento das milícias norte-americanas. "Estou a ver muito desse tipo de posts nas redes sociais, entre as pessoas que conheci quando estava a escrever".
"O movimento das milícias já anda por aí há umas décadas, mas explodiu com a ajuda das redes sociais após a eleição de Barack Obama em 2008", explica Temple. "Tornou-se tão fácil pôr as tuas opiniões a circular – não tens de ser um bom escritor, tudo o que tens de fazer é ligar a câmara do telemóvel e começar a falar".
"Estarem ligados desta maneira também lhes permitiu comunicar e organizar grandes eventos melhor, como agora, em Kenosha", acrescenta Temple. "Vastas redes de indivíduos que pensam da mesma maneira surgiram por todo o país e são capazes de se coordenar". Nestes tempos conturbados, o perigo parece imenso.
Uma estranha conivência
Importa notar que movimento das milícias nos Estados Unidos é confuso, complexo, mutável e recheado de contradições. A motivação de alguns grupos "é, em primeiro lugar, o receio de excessos do Governo e o medo da abolição do seu direito à posse de armas", nota John Temple. Nesse caso, desprezam as agências policiais federais, mas podem ter uma relação próxima com a polícia local. "Outros grupos têm posições anti-imigração, e também há um elemento de supremacia branca", contrapõe o jornalista. Aí, os ativistas anti-racistas são o inimigo a abater e a polícia um aliado conveniente.
Aliás, ainda esta sexta-feira um analista e antigo agente do FBI, Michael German, apresentou um relatório que mostra que, nas últimas décadas, houve infiltrações de milícias e grupos supremacistas brancos na polícia de dezenas de estados. Os casos aumentaram desde a morte de George Floyd, mas "ninguém está a recolher estas dados, ninguém está ativamente à procura destes agentes", disse German ao Guardian.
Não é preciso ir longe para encontrar uma estranha conivência entre a polícia e os grupos de vigilantes armados nas ruas. Tanto Rittenhouse como a Guarda de Kenosha patrulharam a cidade com a benção de alguns policias, filmados a atirar-lhe garrafas de água e incentivos do cimo de um veículo blindado. "Nós agradecemos malta", disse um agente através do megafone. "A sério". Horas depois, com as mãos no ar após atingir três pessoas e uma AR-15 ao peito, o rapaz de 17 anos foi filmado a caminhar tranquilamente através de uma barreira policial, como se nada fosse, enquanto manifestantes gritavam: "Ele acabou de disparar contra uma pessoa!".
À frente de milhões de pessoas
Não foi só nas margens da direita norte-america que se desculpabilizou Rittenhouse, retratado como um rapaz patriota com azar. Face ao ressurgimento das tensões raciais – alimentado por casos como o de Jacob Blake, baleado sete vezes nas costas pela polícia de Kenosha, à frente dos filhos – personalidades conservadoras como Vicki McKenna usam um tom que roça o apocalíptico. Esse medo foi transversal em praticamente todos os discursos na Convenção Nacional Republicana (ver texto ao lado), ou em canais como a Fox News, de longe o mais visto nos EUA.
"Kenosha caiu na anarquia porque as autoridades encarregues da cidade abandonaram-na", apontou Tucker Carlson, um dos apresentadores favoritos do Presidente Donald Trump, no dia seguinte aos homicídios. "Eles encostaram-se e deixaram Kenosha arder. Portanto, estamos mesmo surpreendidos que saques e fogo-posto tenha acelerado até homicídio?", questionou Carlson no seu programa, a que assistem cerca de quatro milhões de pessoas todas as noites. "Quão chocados é que ficamos por pessoas de 17 anos com espingardas decidirem que tinham de manter a ordem quando mais ninguém o faria?".
"Ele acabou de justificar um homicídio", tweetou Nikole Hannah-Jones, jornalista do New York Times, abismada. Está por se saber qual o efeito deste discurso dos conservadores nas redes extremistas à margens da política norte-americana, imersas em paranóia, conspirações, que têm pesadelos com multidões de comunistas e negros vingativos.
"Muitos membros das milícias patriotas têm um medo destas coisas que os consome, e alguns provavelmente têm uma paranoia diagnosticável. Assisti a isso uma série de vezes", refere John Temple. Para o jornalista norte-americano, se nos tempos de Obama era o temor da tirania que mobilizava as milícias, agora "são movidas pela sensação de que alguém que concorda com eles em muitos assuntos está a mandar".