por Manuel dos Santos
Uma estranha apatia parece ter-se abatido no debate público, relativamente à natureza e programação da recuperação da economia portuguesa que será, no essencial, financiada pela União Europeia.
Depois do reconhecimento da existência de ‘uma bazuca’ de dinheiro, o país parou à espera que a chuva de recursos lhe caia automaticamente em cima, se possível de uma forma que não ponha em causa, pelo menos com caráter definitivo, a relação entre perdedores e ganhadores que tem sido a imagem mais estruturante da nossa já longa via sacra em busca do subsídio exterior.
É certo que, a pedido do Governo, foi apresentado e está em discussão, um projeto de programa da autoria do prof. António Costa e Silva, que a maioria dos analistas considerou, simpaticamente, interessante, mas que, infelizmente, também qualificou como pouco ou nada estimulante.
Na impossibilidade de conhecermos todos os contributos e críticas produzidos fixemo-nos apenas na seguinte afirmação do Dr. Paulo Pereira Assis (membro da Direção do Instituto Orpheus na Bélgica): "o plano está cheio de cândidas ilusões, ignorando a realidade concreta o país e da sua população". Dificilmente se poderia ser mais certeiro e objetivo.
Claro que ainda falta muito tempo, até ao inadiável momento da decisão, dirão os otimistas irritantes, e tudo se resolverá a seu tempo, e a ‘bazuca’, tão arduamente conquistada pelo empenho quase exclusivo da França, Alemanha, Itália e Espanha (pelo menos segundo a versão, normalmente bem informada, do jornal europeu Político), pode esperar.
E realmente ‘pode’ como sabem os mais avisados, pois, desta vez, as coisas fiam mais fino e o mecanismo de acesso às verbas que serão atribuídas ao país, exige uma tramitação lenta e complexa, uma capacidade concretizadora superior ao que era normal, um escrutínio mais exigente por parte das entidades financiadoras e um compromisso claro com as reformas económicas e sociais indispensáveis para que a desejada recuperação económica não seja uma miragem.
Isso, aliás, é já evidente, com a utilização do Fundo SURE, 100 mil milhões de euros para apoiar o emprego e combater o desemprego, fundo a que vários países já recorreram (trata-se de empréstimos com taxas muito baixas e prazos de reembolso muito atrativos), mas que só agora (quatro meses depois da sua criação) começa a dar os primeiros passos no que se refere à concretização das operações.
Apesar disso e, sobretudo por isso, o país em geral e a classe política com poderes de decisão não se pode dar ao luxo de ignorar que a utilização eficiente da parte da ‘bazuca’ que nos foi atribuída, não é apenas uma questão de soberania nacional, ou mesmo de sobrevivência, mas também de dever cívico e compromisso com o futuro e com as próximas gerações.
A crise pandémica que se abateu sobre o mundo e que tem vindo a produzir mais pobreza global e mais desigualdade social, está a ter no nosso país uma dimensão assustadora que só perceberemos, em toda a sua dimensão, quando a generalidade da população regressar de férias.
O esforço que vai ser necessário não é compatível com pequenas guerras de capela, ocultações, mentiras, fugas à responsabilidade, querelas exclusivamente ideológicas e afrontamentos corporativos, mesmo se revestidos de uma certa afirmação partidária. Também não é compatível com uma sociedade civil fraca e desmobilizada, mantida nesse patamar por uma desinformação permanente e pelo constante enfraquecimento das instituições.
O conflito recente entre o primeiro ministro e a Ordem e o Sindicato Independente dos Médicos, é um excelente exemplo daquilo que não precisamos em Portugal, nos próximos anos, porque, para a recuperação que desejamos e com os meios que colocam à nossa disposição, todos serão precisos.
E, como é óbvio, os mais responsáveis, terão maior responsabilidade.
São, pois, absolutamente reprováveis algumas palavras, atitudes e comportamentos dos diversos membros do Governo, produzidas e verificadas nos últimos tempos.
E neste estranho teatro de sombras, o primeiro-ministro tem sido o maior protagonista.
Os membros do Governo continuam a sê-lo mesmo que apenas estejam com amigos à mesa do café, não é verdade? Por maioria de razão, a regra deve ser mantida, quando decidam falar em off.
Mas mais grave que estes comportamentos, que alguns reduzem, sistematicamente, à condição de mal entendidos, é a utilização da mentira sistemática, a ocultação de informação e a permanente fuga às responsabilidade.
Há alguns dias o sociólogo António Barreto interrogava-se em mais um dos seus brilhantes artigos, sobre a ‘tempestade perfeita’ que poderia abater-se sobre a sociedade portuguesa. Curiosamente também nessa semana, Mário Draghi, o anterior presidente do Banco Central Europeu, afirmava que "a boa dívida pode salvar as economias".
Somos uma sociedade e temos uma história que resistirá a uma tempestade, mesmo que seja perfeita, e vamos ter acesso a fundos (empréstimos e subvenções) que, se forem aproveitados com eficácia e justiça, permitirão a rápida recuperação económica.
A responsabilidade é de todos, claro, mas é principalmente, dos que foram eleitos para governar, decidir, mobilizar e informar, sem nunca negarem as evidências e sem fugir às responsabilidades.