Quatro anos depois do anúncio do projeto e ultrapassado um primeiro parecer negativo, a Universidade Católica Portuguesa (UCP) já tem luz verde da agência de acreditação do ensino superior A3ES para abrir o que será o primeiro curso privado de Medicina no país.
O anúncio foi feito nas redes sociais pela reitora da UCP, Isabel Capeloa Gil, que já esta terça-feira fez saber que o mestrado integrado poderá arrancar em 2021/2022. Tal como já era público, os planos da Católica envolvem uma parceria com a Universidade de Maastricht e a Luz Saúde. O corpo docente terá elementos nacionais e estrangeiros e será o primeiro curso de Medicina lecionado em inglês e aberto a estudantes de todo o mundo (atualmente, as faculdades públicas não podem admitir alunos internacionais). Também o grupo Luz Saúde, onde os alunos terão a componente prática, nomeadamente no Hospital Beatriz Ângelo, a PPP gerida pelo grupo no SNS, saudou a decisão. “É uma honra, que estou certa que é partilhada por todos os profissionais da Luz Saúde”, reagiu Isabel Vaz, CEO do grupo privado de saúde.
Se, para a Católica, a decisão da agência A3ES “robustece o sistema de Ensino Superior”, o projeto continua longe de reunir consenso e, ontem, o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), que se opõe frontalmente à abertura de novos cursos no país, assim como ao aumento de vagas – recusadas já este ano pelas diferentes faculdades –, lamentou a decisão, que considerou uma cedência a um “capricho” e resultado de pressão política, isto depois de nos últimos meses o Governo ter manifestado a intenção de aumentar a formação médica.
Ao i, Fausto Pinto, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e porta-voz do CEMP, é perentório: “Lamentamos uma decisão que vai ao arrepio daquilo que têm sido as recomendações de quem está no terreno: nossas, da Associação Nacional de Estudantes de Medicina e da própria ordem. Neste momento, não é oportuno estar a abrir mais nenhum curso de Medicina em Portugal. Não é nada contra a Católica ou por ser um curso privado ou público. Não faz sentido, num país como o nosso, com o terceiro rácio mais elevado de médicos por habitante e o oitavo de estudantes, em que temos um excesso de oferta formativa que leva a um número crescente de médicos que acabam por engrossar a lista de médicos indiferenciados (por não terem acesso à especialidade), que se queira abrir uma nova faculdade”.
Para Fausto Pinto, a decisão contra as recomendações – e, ontem, a Ordem dos Médicos revelou que mantém reservas quanto ao projeto – suscita preocupação. “Mostrou a força que o poder político exerceu e que levou a uma cedência com este resultado”. A polémica começou no verão do ano passado, depois do primeiro parecer negativo dos médicos, quando António Costa acusou a ordem de limitar o acesso à profissão e criar obstáculos à abertura do novo curso. A querela entre os médicos e o Governo – tanto pelas vagas para Medicina e acesso à especialidade como pelo papel da ordem – continuou a aquecer, ainda antes dos recentes desenvolvimentos por causa da pandemia. Na altura, as declarações foram feitas pelo primeiro-ministro em Sintra, onde será instalado o campus, o que ontem motivou também uma reação positiva de Basílio Horta. “Aumentar o número de pessoas em formação é absolutamente vital para se poder ter os recursos humanos que estão ao alcance do país”, defendeu, na altura, o primeiro-ministro.
Ontem, a ministra da Saúde considerou que o novo curso poderá ser uma oportunidade para quem vai tirar o curso no estrangeiro. Fausto Pinto responde: “Depende sempre do ângulo de que se olha: se pensarmos que vamos investir para suprir necessidades do país, não faz sentido aumentar fornecimento de material humano que não vai ter saída. Se virmos Medicina como outro curso qualquer, de facto, há uma oportunidade, mas estamos a formar estes médicos para emigrarem ou não terem saída. A única diferença será que, em vez de estarem na República Checa, estão aqui, mas o problema é o mesmo. Estamos é a aumentar ainda mais o problema a nível interno, porque vão engrossar a lista de médicos sem saída. A não ser que se entenda que o curso deixa de servir para formar médicos, mas os recursos não são ilimitados. Isto vai satisfazer a entidade que vai abrir o curso. Para o país, interessa zero”, reitera Fausto Pinto. “Temos oito escolas médicas para 10 milhões de habitantes. O rácio normal é de uma escola por cada dois milhões de habitantes. A Alemanha tem 40 escolas médicas e tem uma escola privada, com 80 milhões de habitantes. Qualquer dia temos 15 escolas médicas e somos a risada da Europa. Não sei onde há recursos para isso, não se formam laboratórios de investigação de um momento para o outro. Pode haver afiliações, mas até enquanto cidadão fico um pouco chocado ao ver uma universidade portuguesa ser uma filial de uma universidade holandesa. Um curso ser sustentado em recursos estrangeiros não é proibido, mas é um bocadinho humilhante para a academia médica portuguesa”, conclui.
Ordem desmente A3ES Depois de o presidente da A3ES ter indicado que o curso tinha recebido agora parecer positivo dos médicos, a ordem desmentiu que tenha sido dada uma avaliação positiva e tornou público o novo parecer. Não indica se é negativo ou positivo, mas conclui que subsistem preocupações. A principal, lê-se, prende-se com o facto de o Governo já ter indicado que não renovará automaticamente a PPP de Loures, cujo contrato termina em 2022 e que a ordem considera uma “pedra basilar” do curso. “Será avisado e prudente aguardar o desfecho do novo concurso para a gestão em PPP do HBA antes de viabilizar qualquer proposta que se alicerce nesta instituição, para evitar situações como a do curso de Medicina de Aveiro (que, recorde-se, foi encerrado pouco depois de inaugurado, por manifesta falta de condições de funcionamento), com repercussões gravosas para os estudantes que o frequentavam”, considera a ordem. Os locais de estágio e o currículo são outros aspetos que merecem reservas dos médicos, que em comunicado consideram também que “tendo em consideração o condicionamento político prévio a que se assistiu nos últimos meses (…), a decisão foi ao encontro do que era esperado, com a esfera política a prevalecer sobre a esfera técnica”.